Felizmente aqui em casa quase não ficamos doentes, mas pra quem precisa de atendimento médico sério a coisa deve ser muito, muito complicada. Vou contar a saga do otorrino pra vocês terem uma ideia de como anda a situation por aqui.
Apesar de ficarmos doente menos frequentemente do que todos os nossos amigos, esse ano o inverno foi longo e muito frio, todo mundo passou meses enfurnado em casa (e ainda estamos; 15 graus hoje, chovendo) e a TODO MUNDO ficou doente. Na escola da Carol passamos dez dias com metade dos alunos em casa com febre, as duas professoras E a assistente doentes também – em duas ocasiões diferentes. Na natação a turma dela se reduziu à metade. Enfim, um horror. E desde o final do ano passado que toda vez que ela fica resfriada e encatarradésima, fica completamente surda. Otite mesmo só rolou uma vez esse ano, felizmente, mas ela estava surda direto praticamente desde janeiro, quando começaram as ondas virais e bacterianas na escola, depois das férias de fim de ano. Sabemos que quando o catarro vai embora a audição volta, mas como foram muitos meses seguidos (e eu não aguentava mais ter que falar tudo gritando. ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO ODEIO gente que berra), resolvemos procurar um otorrino pra avaliar melhor.
O procedimento pra pedir consulta com especialista é o mesmo em toda a Europa, creio: primeiro você tem que passar pelo seu médico de família, que costuma ser uma anta, ele faz o pedido num papelzinho especial e você vai nas agências do SUS (ou em algumas farmácias, no caso da Itália) e reserva. Então fomos à pediatra da Carol, que atende pelo SUS e é muito boa mas está sempre entupida de pacientes. A secretária nos encaixou na hora do almoço da médica juntamente com outras SEIS crianças, todas marcadas no mesmo horário e atendidas por ordem de telefonema. Logicamente a pediatra estava com um mau humor fenomenal, totalmente compreensível dada a situação, e nos atendeu à base de patadas, mas fez o raio do pedido. O Mirco foi direto à farmácia onde compramos todos os remédios desde que a Carol nasceu, porque é em frente à oficina dele, e tentou marcar a consulta. Data: SETEMBRO. Oi? Liguei pro departamento de otorrino do hospital de Perugia, porque o de Assis está fechando e não tem mais quase nada funcionando, e perguntei se tinha pronto-socorro de otorrino, porque aí eu aproveitava que ela estava com dor e entupida de catarro até a alma pra ter uma justificativa pra levá-la pro PS. Não, senhora, não há mais PS de otorrino. Puxa, mas só tem vaga pra consulta em setembro, eu precisava agora. Então pode marcar com o sistema Intramenia, senhora; tem vaga segunda que vem com o chefe do serviço, são 120 euros. Marquei.
O tal sistema Intramenia nada mais é do que uma maneira de evitar a evasão fiscal. Os médicos filhos da puta atendem poucos pacientes por dia e desviam os outros pros consultórios particulares, onde atendem sem nota fiscal; o hospital se prontifica a ceder sala e equipamentos e ganha uma parte desses 120 euros, que o médico tem que declarar porque o paciente paga no caixa no hospital. Todo mundo ganha, menos o paciente, como os dois manés aqui, que ou desembolsavam essa grana ou esperavam até SETEMBRO pra conseguir a porra da consulta. O problema é que a Umbria tem tipo quatro habitantes. Não, sério, a densidade demográfica aqui é baixíssima, o hospital de Perugia acabou de ser todo reformado e aumentado, e mesmo assim faltam leitos, falta pessoal e você só consegue consulta quando o cometa Halley passar de novo. Puta que pariu.
Muito bem. A consulta estava marcada pras 15:40 de hoje. Lá fomos nós voados de casa depois da escola pra chegar no hospital às 15. Demos uma mega cagada e conseguimos estacionar logo de cara, uma raridade porque o estacionamento é completamente subproporcional pro tamanho do hospital e neguinho estaciona em fila dupla, tripla, em cima dos canteiros, na baia do ônibus, numa fila central imaginária no meio das alamedas do estacionamento… Não sabíamos se tínhamos que passar no CUP (o caixa) antes, porque não tínhamos nenhum papel na mão pra comprovar a marcação, já que foi feita por telefone e não envolve nenhum número de protocolo nem nada. Resolvemos passar no CUP pra perguntar, disseram que era lá mesmo. Chegamos no caixa e a mulher não encontrou a Carol porque pelo telefone eu passei o sobrenome do Mirco, mais fácil de soletrar, mas no documento novo constam os meus sobrenomes também. Obviamente a mulher não foi capaz de extrapolar que o nome era sempre Carolina, logo deveria ser a mesma pessoa, e ligou lá pra otorrino pra perguntar. Depois de uma discussão meio longa, ela entendeu o que tinha acontecido e fez tudo direitinho, nos dando quatro páginas A4 impressas – duas cópias da fatura e duas que até agora não entendi pra que servem mas de qualquer forma são um desperdício ridículo de papel.
Agora a coisa começa a esquentar, prestem atenção. Quando marquei a consulta no telefone a moça falou pra ir pro bloco C, quarto andar, mas a mulher do CUP nos mandou pra aceitação (a.k.a. triagem) da otorrino, do outro lado do hospital (que é MONSTRUOSAMENTE GRANDE). Lá fomos nós pra aceitação, onde a mulherzinha nos olhou como se fôssemos alienígenas porque paciente marcado com Intramenia não passa pela aceitação e é atendido em outro lugar, não na enfermaria de otorrino onde a mulher do CUP falou, mas no corredor dos consultórios médicos no tal bloco C. Lá vamos nós procurar o tal bloco (a mulher no telefone tinha razão, afinal de contas). Olha que genial: em vários dos blocos os andares não se comunicam diretamente, você tem que mudar de bloco pra pegar o elevador ou as escadas pro andar que você quer. Legal, né? Andamos pelo hospital por QUINZE MINUTOS procurando a merda do bloco C, até que uma alma caridosa, um enfermeiro manco com um sotaque hediondo de Perugia, se ofereceu pra nos levar até lá, pois era mais ou menos pra onde ele estava indo mesmo. Chegamos no bloco e pegamos o elevador até o quarto andar, mas demos de cara com uma placa que dizia “Hemoterapia” e mais nada. Sai uma enfermeira do corredor, perguntamos onde fica a otorrino e ela não tem a menor ideia. Descemos de novo, perguntamos pra outra pessoa, pegamos outro elevador e fomos parar no bloco certo. Vimos um corredor com a placa “Consultórios Médicos” e saímos procurando a sala do chefe da otorrino. Como o conceito de recepcionista aqui é completamente desconhecido, você tem que sair perguntando pras pessoas nos corredores ou batendo nas portas feito um mendigo, até acertar; na sala marcada como secretaria de otorrino ninguém atendeu, mas ao bater na sala do chefe do serviço ele respondeu que era pra esperar um minutinho. A essa hora estávamos dez minutos atrasados de tanto rodar pelo hospital, mas beleza, o cara tá atendendo outro paciente, esperemos. A Carol vira pra mim e pede pra fazer xixi, com aquele timing maravilhoso que criança tem. Vou procurar um banheiro e vejo a placa: “banheiros públicos somente no andar térreo”. Pra não errar de elevador (eram 4, dispostos em cruz nesse encontro de corredores onde estávamos), descemos de escada. Não encontro o banheiro normal, só o de deficientes físicos, que tem aquela privada esquisita rebaixada na frente. Carol se molhou toda de xixi, a descarga estava quebrada e não tinha sabão nem papel pra secar as mãos; fomos de álcool gel mesmo.
Na volta arrisquei o elevador. Apertei o 4 mas ele parou no 3; como ninguém entrou, eu, com pressa, achei que já fosse o 4. Desci e não achei a merda do corredor dos consultórios médicos, acabei entrando na enfermaria de ortopedia, de onde fui sumariamente enxotada. Subimos até o quarto andar de escada e depois de um breve momento de desorientação, localizei o Mirco, que estava parado na porta do consultório. O médico tinha feito ele entrar e depois desceu pra resolver sei lá o quê não sei onde. A essa altura do campeonato já eram 17:10. Uma moça com o filho adolescente para na porta aberta e pergunta se esse é o consultório do Doutor Tal; respondemos que sim e ela FINALMENTE! Estou rodando há meia hora! Agora nem me importa ter que esperar, pelo menos sei que estou no lugar certo!
O médico aparece uns 10 minutos depois e bota os fones no ouvido da Carol pra fazer a audiometria, explicando igual à cara dele o que ela precisa fazer. Ela, que quando liga a modalidade Mega Timidez Ultra Plus fica esfregando os olhos e não fala absolutamente nada, não respondeu. A tentativa dele durou dez segundos; desistiu dizendo “ela não coopera, vamos fazer uma timpanometria” e ligou pro ambulatório pra ver se tinha algum técnico livre. Explicou onde ficava a maldita da sala da timpanometria e lá fomos nós.
O elevador que ele mandou pegar não estava funcionando. Pegamos outro, mas saímos em outro lado e as instruções que ele deu não valiam mais. Saímos de novo perguntando feito dois retardados, erramos o caminho três vezes mas finalmente achamos a sala. A técnica foi muito simpática e fez o exame rapidinho. Erramos o caminho mais uma vez pra voltar (OK, somos meio geograficamente tapados) e quando chegamos o médico estava atendendo a mãe do adolescente. Esperamos mais um pouco, entramos, conversamos cinco minutos e fomos embora. (Tudo OK com o zovido, por sinal).
Isso tudo nos custou 120 euros e a aula de dança da Carol, que perdemos – não teríamos perdido se tivéssemos encontrado logo o consultório, se ele não tivesse feito a gente esperar, se tivesse banheiro em todos os andares, se ele tivesse tido um pouco de paciência com a Carol e tivesse conseguido fazer a audiometria lá mesmo.
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A avó do Mirco morreu há um mês. Estava senil mas fisicamente OK. Acordou com falta de ar; quando cheguei lá ela já estava sendo descida das escadas pra entrar na ambulância. A médica disse pra gente torcer pra ela não precisar ser internada, porque não havia leito em lugar nenhum, o mais próximo disponível era em Città della Pieve, longe PRA CACETE, lá nas montanhas, depois de uma estrada cheia de curvas onde é impossível ultrapassar morrinha e que fica intransitável quando neva. Vou repetir: não tinha leito nem em Foligno, que é um hospital novinho em folha (onde a Carol nasceu), nem em Perugia, que é GIGANTESCO e foi reformado há coisa de dois anos. Pode isso, Arnaldo?