felliniano

Com todas essa coisa da universidade, acabei nem contando o jantar bizarro de sábado passado.

Tínhamos ido, com Marco e Michela e a irmã do Marco, Cristina, com o marido, Natale (dovarante conhecido como O Homem Dos Dentes Mais Feios Do Mundo), a Foligno. Estava rolando o festival Primi d’Italia, uma festa dos primi piatti que parecia muito interessante do ponto de vista gustativo.

Só que era tudo TÃO confuso que não conseguimos comer LA-DA. Os stands estavam todos entupidos de gente e tinham como objetivo vender macarrão, muito mais do que fazer neguinho comer macarrão. Estávamos dispostíssimos a pagar dois euros por degustação, mas se não encontramos nada pra degustar! Pacotes e mais pacotes de macarrão, de todas as formas, cores e tipos, handmade, fatti in casa, artesanais, sei lá o que mais, mas tudo pra vender. Então nos enchemos e começamos a parar gente na rua pedindo sugestões de onde ir comer – nenhum de nós conhece Foligno direito, e a cidade, apesar de rica, é famosa pela falta do que fazer. Acabamos entrando num mix de loja de especiarias e chocolateria e drogaria, e a senhora nos disse pra procurar uma tal de L’Osteria, deu as indicações e coisa e tal, e ainda comentou que deveríamos dizer que era ela que nos tinha mandado lá.

Não era longe, não estava muito frio, a caminhada foi gostosa e abriu mais ainda os apetites – depois de tanto rodar pra tentar entender alguma coisa, já eram nove horas passadas. Encontramos o tal lugar; tinha muita gente do lado de dentro, esperando em pé, e alguns retardados fora da porta de vidro, fumando. Na nossa frente havia um grupo de três senhores bigodudos e uma senhora que esperava uma mesa pra sete. Um corre-corre danado; um menino novinho bonitinho, filho do dono, um careca tranqüilo mas com cara de mandão, e uma loura esperta que volta e meia botava o nariz pra fora da cozinha pra trazer o prato de alguém. Nada de menu, mas havia uns folhetos espalhados sobre um barril logo na entrada descrevendo alguns pratos. Achamos que eles estavam trabalhando no esquema degustação, pegando o gancho da festa dos primi piatti; paramos o careca-dono pra perguntar se era isso mesmo, ele disse que não, que o folheto estava errado. Então tá. A senhora que esperava a mesa pra sete pessoas queria era degustar, então foi embora e nós herdamos o seu lugar na fila. Demorou séculos mas finalmente os senhores bigodudos sentaram. Logo depois chegou um grupo de senhores MUITO distintos dizendo que tinham passado lá antes e lhes tinham dito de voltar mais tarde. Pra mim, honestamente, isso não pode ser considerado reserva – nada de nomes, nem horário, nem ninguém que se lembrasse da cara deles – mas como aqui também se dá um jeitinho pra tudo, rearrumando os comensais já sentados conseguiram liberar duas mesas grandes. Dissemos ao careca que a senhora da drogaria tinha nos mandado lá, e ele respondeu “não tenho a menor idéia de quem vocês estão falando”. Então tá.

A nossa ficava bem em frente ao balcão de frios. Explicando: osteria não é um restaurante; é um lugar onde belisca-se e come-se o que tem naquele dia, incluindo pão, frios, queijos, e os dois ou três tipos de prato (primo e secondo) que a cozinheira preparou com produtos locais e da estação. Então atrás do balcão tinha um fulano lerdíssimo que não faz nada da vida a não ser cortar queijos e fatiar frios e pão. Uma raposa, como disse o Natale de sacanagem, porque o cara estava realmente muito fora do esquema estressante do resto da osteria. Todo mundo na maior correria (e gritaria, lógico), e ele todo zen, fatiando presunto e salame de cervo.

Sentamos à mesa, mas ninguém tinha tempo de tirar a mesa. Então começamos nós mesmos a tirar e amassar os place mats de papel, os pratos, copos, talheres, garrafas de água mineral. O careca passou, rindo, e pegou tudo pra levar pra cozinha. O tempo passava e ninguém tinha tempo de botar a mesa pra gente. Descobrimos o estoque dos place mats e dos talheres e nós mesmos começamos a botar a mesa. O careca veio rindo e pedi uma água mineral pra tomar o comprimido pra enxotar a enxaqueca que já estava se instalando na maior. Ninguém tinha tempo pra me trazer a água mineral. De tanto ouvir neguinho chamando um ao outro aos berros, aprendemos os nomes da galera, principalmente do Leonardo, o filho do careca, mais perdido que cego em tiroteio. Leonaaaaaaardo, traz a água mineral, traz o pão que tem mulher grávida com fome! (a Michela ainda não pariu.) E nada do Leonardo aparecer. Natale levantou e foi pedir umas fatias de pão pro Raposa, que logo lhe deu uma cestinha cheia. A loura apareceu e perguntou se já tínhamos pedido. Mas se nem sabemos o que tem pra comer!!! Leonaaaaardo, vai explicar o menu pros senhores. Raposa, enquanto isso dá uma fatiada aí e prepara uns pratinhos pros senhores.

Leonardo apareceu quando já estávamos na metade dos fatiados e queijos, e tirou um pedaço de papel amassado do bolso. Começou a recitar os pratos: penne com molho picante de alcachofra, strangozzi (um tipo de espaguete típico da Itália central, mais grosso que um espaguete normal) al tartufo nero di Norcia, tagliatelle all’uovo con funghi porcini, con o senza pomodoro. Pedimos, além dos queijos e frios, duas cumbuquinhas de feijão à moda toscana – com um pouco de tomate no molhinho picante. Eu adoro feijão, aliás adoro qualquer cereal e leguminosa, e fiquei animada. Pedimos também bruschette que nunca chegaram, mas tudo bem.

O prato da Cristina, a única que pediu penne com molho de alcachofra, chegou enquanto ainda estávamos nos queijos – não por eficiência, mas porque o Leonardo tinha esquecido de entregar um pedido na cozinha e os clientes, de saco cheio de esperar horas por um prato que jamais chegaria, deram no pé. Foi aí que o Leonardo teve a idéia de passar o pedido pra cozinha, e a loura-mãe só foi lembrar de cancelar o pedido quando esse prato já tava pronto. Então a Cristina foi a primeira a comer.

Horas depois – e duas jarras de vinho branco da casa depois – ainda estávamos com fome, mesmo depois de tanto pão e queijo. O feijão chegou, decepcionante na quantidade, tipo duas colheradas por cumbuca, mas deeeeeeeeelicioso. Cristina levantou pra fechar a porta de vidro, porque tava um frio do cacete.

Horas depois – já eram quase onze e meia – começam a chegar os pratos de pasta. Àquela altura já tínhamos dado muita risada, ajudando o coitado do Leonardo a lembrar dos pedidos dos outros clientes, ajudando o Raposa a cortar mais pão e servir mais vinho, que o Natale levantava e ia lá pegar ele mesmo, sacaneando o careca que se controlava pra não rir quando um cliente pediu uma “grappa morbida” (grappa macia. Essa mania dos termos ridículos pra definir bebidas é realmente uma comédia) e ele lhe deu a única que tinha – que definitivamente não era macia, como depois comprovaram os meninos. A enxaqueca já tinha passado, estávamos todos satisfeitos, o Mirco já tinha desenhado no place mat um gráfico do nível de atenção do Leonardo com o passar das horas. A loura-mãe veio da cozinha, viu o gráfico e caiu na risada. Disse que o Leonardo foi concebido em um dia de muito cansaço e por isso saiu assim, lento. Nós ríamos, ríamos, ríamos. Vimos que as sobremesas, umas tortas com geléia de fruta (chamam-se crostate), estavam desaparecendo. A Michela, chegada num docinho, gritou pro Raposa separar um pedaço pra ela. O Mirco gritou pro Raposa separar TUDO e não vender mais doce pra ninguém. E lá vai o careca esconder a torta pros outros clientes não pedirem.

Ninguém tinha tempo de tirar a mesa, então nós mesmos começamos a reunir os pratos e copos sujos. Pegamos uns pratos de sobremesa que estavam na estante atrás de nós e fomos buscar a torta com o Raposa. Não sobrou nada. Mirco foi supervisionar a produção dos cafés, porque o Leonardo, com aquela cabeça-de-vento, era bem capaz de não lembrar mais qual era o decafeinado, e o Mirco se toma café normal não dorme por uma semana. Grappa pros meninos, superseca e nada morbida. Apesar de já ser quase meia-noite, ainda entram clientes. Mulheres estranhas, de botas brancas e longos cabelos preto-graúna, maquiagem exagerada. Leonardo se vira de repente, dá de cara com a mulher e faz uma cara de susto. Nós rimos sem parar. Michela levanta e vai pegar uma maçã da cestinha sobre o balcão. Marco pega uma banana. O Raposa sai de trás do balcão e vem conversar com a gente. Diz que trabalha na fábrica de peças de avião que tem em Foligno, mas que trabalhou durante 9 anos como salumiere e de vez em quando faz bicos em restaurantes fatiando frios.

Finalmente o movimento cai e os donos vêm conversar com a gente. São de Norcia, e têm uma osteria ali também, mas o movimento, lógico, é pouco – Norcia é mais fim do mundo ainda do que Bastia, e ainda por cima é um frio do cacete. Abriram essa em Foligno há dois meses e ainda estão tentando entender o movimento como funciona. Não estavam preparados praquela confusão toda; muito pelo contrário, achavam que, com o festival rolando, a galera ia comer na rua, nos stands, e não nos restaurantes. Mas parece que nós não fomos os únicos a não entender nada, e assim os restaurantes da cidade estavam todos lotados.

Na hora de fazer a conta, fui levar as minhas anotações pra loura-mãe, visto que conforme pegávamos novas jarras de vinho e novas cestas de pão ninguém do staff anotava nada. Ela tinha feito uma listinha daquilo que tínhamos pedido ao Leonardo. Avisei que as bruschette não tinham vindo, mas que tínhamos bebido mais vinho e coisa e tal. Ela fez umas contas malucas que não entendi, com uns rabiscos ilegíveis, fez um descontinho porque somos simpáticos e não reclamamos da demora, e no final a conta deu 20 paus pra cada um. Nada mal, porque comemos MUITO BEM, apesar do serviço completamente maluco, e consumimos nada mais do que 5 jarras de vinho da casa.

Ficamos de voltar em um dia mais normal, no meio da semana. O menu é sempre uma surpresa e o careca nos deu o número do celular pra ligar e perguntar o que rola. Disse que faz um molho de javali de comer chorando, então ficamos de ligar de vez em quando pra ver se conseguimos comer o tal javali.

Olha, sinceramente, tinha muito tempo que eu não ria tanto.

novos bárbaros

Rodei mais quilômetros hoje que um caixeiro viajante.

De manhã dei uma ajeitada em casa e fui direto pra escola, pegar o celular que eu deixei lá ontem à noite. Depois diretamente pra Marsciano, a 26 quilômetros de distância, dar aula pros meus dois queridos – ele, o chefe, muito esperto e esforçado, ela, a secretária part-time, mais bobinha, do tipo que sai correndo da aula pra que a filha, que estuda em outra cidade e sai muito cedo de manhã, não precise botar a mesa. Porque botar a mesa é um esforço elooorme, vocês sabem.

De Marsciano (pronúncia Marshano), pra Foligno, pra um bate-papo naquela outra escola que anda me sondando há tempos. Só que a mula aqui, em vez de pegar a superstrada, pegou uma estrada interna. Pronto! Paisagem linda, casas maravilhosas no meio do nada, campos já colhidos e iniciando o repouso do inverno, várias placas com nomes estranhos, cidadezinhas de quatro casas – mas basta um caminhão na sua frente pra você perder meia hora de tempo, porque não dá pra ultrapassar com facilidade. Resultado: cheguei tardão em Foligno, com somente meia hora pra discutir um monte de coisas importantes. Claro que a pessoa com quem eu deveria falar estava ocupada com outra garota, e levou séculos pra se desenrolar. Conclusão: saí de Foligno na hora em que deveria estar começando a aula com o SuperSimpatia. Saí voando pela superstrada, nos limites dos limites de velocidade.

E foi aí que eu quase morri, porque falar latim nunca esteve tão longe de significar civilização do que nos últimos tempos, e os italianos são definitivamente as pessoas mais mal educadas do planeta Terra.

Eu vinha pela esquerda na superstrada porque 1) não tinha ninguém atrás de mim, 2) eu estava indo bem rapidinho, e 3) a cem metros de onde eu me encontrava, a estrada bifurcava: à esquerda pra Perugia, à direita pra Cesena, e depois Ravenna etc. Já havia inclusive a sinalização horizontal, com a estrada pintada com setas elormes indicando Perugia e Ravenna. Nisso surge atrás de mim um idiota piscando o farol. Pra onde ele queria que eu fosse, eu não sei, porque se eu me deslocasse pra direita, seus amigos de má educação não me deixariam voltar pra esquerda em tempo de pegar a estrada pra Perugia, e eu iria acabar parando em Cesena. Como eu não estava morrinhando, muito pelo contrário, fiquei onde estava. Alcancei um caminhão, já no viaduto onde não é possível ultrapassar, e o chato continuava piscando o farol. O viaduto desemboca na outra parte da superstrada; o caminhão deu a seta, entrou e ficou na direita; eu dei a seta, entrei e ultrapassei o caminhão. Não tive tempo de voltar pra direita, porque o chato lampejante me ultrapassou PELA DIREITA, e METEU O PÉ NO FREIO na minha frente – íamos a 120 quilômetros por hora. Meteu o pé no freio por puro despeito. Não sei como a Uno, que não só está caindo aos pedaços mas também é levinha, com pneus estreitos e por isso pouco estável, não saiu rodando pela pista matando não só a mim mas mais um monte de gente. Sambou bastante e segurei o volante com força pra não perder o controle, mas sinceramente foi muita, muita sorte. O cara ainda teve o topete de me dar the finger, acreditam?

Vou te dizer, a cada dia que passa mais eu tenho nojo desse país. Ou melhor, da gente que vive nele.

putz

Não sei como vou fazer pra agüentar até sexta-feira, quando finalmente sai o resultado das bolsas de estudos.

O mais ridículo é que as aulas começam logo na segunda-feira seguinte, e que não tem NENHUM material informativo pronto pros alunos. Ninguém sabe qual nem onde vai ser a aula inaugural, quais livros vão entrar no programa, quem vai dar aula do quê. Muito organizado. Se eu conseguir mesmo voltar a estudar, nem vou ter tempo de descansar, porque vou engatar essa última semana na oficina treinando o Stefano e a Elena diretamente com a faculdade – if, if. Ô país miseravelmente desorganizado!!!

findi

Nada de cinema nesse fim de semana. Finalmente saiu o Charlie and the Chocolate Factory, cuja versão antiga aliás passou na TV hoje à tarde, mas não tivemos paciência. Exaustos, teríamos certamente dormido no cinema, coisa que pelo menos pra mim não tem sentido nenhum (o Mirco capota mesmo, com direito a ronco e tudo, e não tá nem aí). Então nem dormimos depois do almoço porque senão iríamos toda vida, até a hora do jantar, e fomos direto fazer compras em Santa Maria ontem. Hoje lavamos os cachorros, que estavam horrendamente fedorentos, consegui bater papo com a minha mãe no Skype, e fomos jantar com Marco e Michela na festa em Bastia.

O rione, ou parte da cidade, mais famoso pela boa comida é o Sant’Angelo, que seria o rione ao qual pertencemos, morando em Cipresso. É o mais democrático, porque pega as partes periféricas da cidade. Só que essa fama já rola há tanto tempo que a taverna do Sant’Angelo vive entupida. A fila estava gigantesca, e com a Michela grávida e cheia de fome e de dores e de chatices não dava pra perder horas esperando pra comer. Então fomos pra taverna do Moncioveta, o rione que pega a parte do Borgo Primo Maggio, onde vivem os napolitanos todos. Não tinha fila nenhuma (também, a comida não tava lá essas coisas) e depois fomos dar um pulo na praça. Fiquei com muita pena do grupo que estava tocando, muito bem por sinal, Joe Cocker, Commitments e Creedence Clearwater. NINGUÉM assistindo, até porque ninguém aqui sabe o que são isso. Tipo KaRla que nunca tinha ouvido falar do Queen, saca, Huňka? O vocalista tinha cara de tudo, menos de vocalista: camisa e calça social, careca, cintinho, sapato social, óculos, barriga precoce. Mas cantava bem direitinho. Arrastados pelo Marco, que só gosta de música italiana e é fanático pelo Vasco Rossi, não tivemos outra escolha. Joguei um sorrisão e um joinha pros meninos no palco, senti vergonha por eles e fiquei com vontade de chorar, e fomos embora.

E só fui dormir às três da manhã, porque queria me livrar do Paul Burke de qualquer jeito. Mula.

il terzo mondo è qui…

Outro dia assistimos a um debate na TV sobre uma das maiores pragas da sociedade italiana: a raccomandazione, ou o famoso pistolão.

NADA aqui funciona sem pistolão. Desde a coisa mais simples, como uma caixa de limão verde que a verdureira só te arruma porque ficou sua amiga, até coisas sérias como conseguir emprego nas estatais. O assunto surgiu por causa do escândalo das listas de raccomandazioni pra entrar nos Correios. A coisa era organizada: descobriram um CD com um banco de dados com o nome do raccomandato, o nome do raccomandante, que tipo de cargo poderia ocupar, e coisa e tal. E o pau comeu mais ainda porque os correios italianos são mundialmente famosos pela sua incompetência, lerdeza, mania de perder coisas, gente retardada trabalhando nas agências. Já falei mal dos correios aqui um milhão de vezes, e toda vez que tenho que ir lá me irrito. E olha que eu conheço agências dos correios do país inteiro – quando viemos aqui pela primeira vez, eu e Valéria trocávamos dólares sempre nos correios e vimos muita gente na fila reclamando e mandando chamar o gerente porque a fila era enorme e ninguém lá dentro se mexia pra agilizar o serviço.

As três agências que mais freqüento são a de Santa Maria, a de Bastia, onde tenho conta, e a de Ponte San Giovanni, a dois minutos da escola. O nível de retardamento mental e despreparo das pessoas que trabalham ali dá vontade de chorar. Imaginem que uma vez fui a Bastia depositar um cheque dos correios – veja bem, nem pedi pra trocar, só pra depositar mesmo – e a energúmena atrás do vidro me disse que uma das regras dos correios é só lidar com cheques da mesma agência. Minha senhora, eu disse, a senhora compreende que se fosse assim os cheques não teriam razão de existir? Se um cliente de Bari me paga com cheque, segundo a senhora eu vou ter que ir a Bari pra depositá-lo? Tem sentido isso? Não teve jeito, a mulher cismou, bateu o pé, e não quis depositar. Então fui a Torgiano, agência minúscula mas com uma gerente espertíssima, e contei a história (só não vou mais a Torgiano, onde fica a oficina, porque eles fecham à tarde, enquanto que as outras agências funcionam em horário integral, inclusive sem fechar na hora do almoço, olha só que avanço.). A mulher ficou furibunda! Volta lá e me faz o favor de dizer praquela múmia que ela é uma imbecil e não sabe nada! Que gente retardada! Onde foi, em Bastia? Ah, eu sabia, só tem imbecil naquela agência! Tirou uma xerox do contrato entre o correntista (no caso, eu) e o banco, explicando os prazos de pagamento dos cheques, da praça, fora da praça, do BancoPosta, de outros bancos, sublinhou tudo o que interessava, e me implorou pra ir lá esfregar tudo na casa da energúmena de Bastia.

Mas enfim, o assunto era pistolão. O debate foi interessantíssimo. Havia alguns peixes grandes da política – um fascistão do Veneto, um senador vitalício filho da puta de Nápolis – e mais uns gatos pingados: uma cirurgiã espertíssima, que mesmo sendo docente de quatro universidades estrangeiras jamais conseguiu trabalhar na Itália porque não pertence a nenhuma família de tradição médica; um professor da Bocconi, famosíssima faculdade de Economia de Milão; Emilio Fede, um puxa-saco do Berlusconi que me dá nojo só de ver, e mais uns fulanos que telefonavam e faziam participações especiais ao vivo. Entre esses últimos, o prefeito de Roma, que ligou pra esclarecer uma história confusa que saiu nos jornais sobre possíveis raccomandazioni da parte sua. A sua explicação foi, na minha opinião, pior que o soneto: disse que só deu uma ajuda pra arrumar emprego pro filho de um bombeiro que morreu em serviço. Ora, faça-me o favor, eu entendo que é chato o cara morrer em serviço e que o Estado lhe deve alguma coisa, mas daí a arrumar emprego pro filho do cara, que não era absolutamente preparado pro cargo, temos léguas de distância.

A cirurgiã foi a nossa preferida da noite. As caras que ela fazia a cada comentário absurdo, a cada conversa filmada escondido, eram de matar de rir e refletiam exatamente o que estávamos pensando. Na verdade todas as pessoas entrevistadas na rua e todos os envolvidos nas tais conversas gravadas admitiam que o pistolão faz parte da cultura italiana, que sempre foi assim e sempre será, que em alguns casos nem é tão grave assim. A última coisa que eu vi antes de cair no sono foi que os únicos profissionais italianos respeitados no exterior são os que efetivamente estudaram no exterior, porque nas faculdades italianas o planeta inteiro sabe que o esquema é o pagou-passou, ou o conhece-alguém-lá-dentro, tá feito. Um outro professor de universidade contou que já recebeu listas de nomes que lhe foram passadas por baixo da porta de casa – nomes de alunos que ele deveria aprovar, porque raccomandati por gente importante.

Algo me diz que não vou conseguir voltar a estudar.

ah, tá…

Os assuntos da semana aqui na bota são dois.

O primeiro, e por favor não riam, é o caso dos carrapatos no trem. Pois é. Um monte de passageiros andou reclamando de carrapatos no trem, inclusive na linha Milão-Florença, muito freqüentada. A história deu direito a fotos dos carrapatos nos jornais e tudo. Mas, principalmente, descobriu os podres das licitações pra limpeza dos trens e estações da Ferrovia dello Stato.

O segundo, e por favor não chorem, é que Berlusconi e seus capangas acabaram de aprovar uma lei que determina punições severas pra quem se mete a besta escutando conversa telefônica e interceptando correspondência de gente envolvida em qualquer tipo de crime (leia-se Berlusconi & gang com os rabos presos com a máfia, e com coisa pior). Então tipo assim, o jornalista que escrever artigos que incluam trechos de conversas interceptadas paga uma multa fenomenal. E o jornal que os publicar, mais ainda. Sacaram?

reclamona

Tanta coisa acontecendo essa semana…

Lá pra sexta-feira deve sair o resultado das bolsas de estudos. Se acreditarem na minha pobreza, que é muito verdadeira, sim senhor, e me derem a bolsa, em outubro volto a estudar. Mas estou tentando não pensar muito no assunto, porque se não rolar eu vou ficar MUITO decepcionada.

Sexta-feira também é o dia da minha consulta no Centro de Cefaléia de Perugia.

Amanhã começamos a testar a talvez nova secretária. Quem passou a bola foi o Fabião, que trabalha com jovens excepcionais (ou simplesmente complicados) e nos mandou a Elena, uma menina de 23 anos, baixinha e magrinha, com uma doença degenerativa que eu não lembro qual é. Semana passada ela esteve na oficina com a Federica, simpática e grávida mulher do primo do Moreno (o Paoletto, o que trabalha na Questura e me deu uma mão com o permesso di soggiorno em maio), que trabalha com o Fabião. A Elena tem alguma dificuldade pra falar, e os movimentos são um pouco lentos e menos precisos do que a média, mas é muito esperta, nos deu a impressão de ser muito cheia de boa vontade, e ainda por cima é engraçada e nos fez dar muita risada. As vantagens fiscais são inúmeras por causa do grau de invalidez dela. Mas o motivo principal é o seguinte: de todos os salames que já passaram ali no escritório até agora, a mais normal, mais simpática e mais séria foi ela. Vamo todo mundo acender velinha pra coisa funcionar, porque todos nós gostamos muito dela e queremos muito que dê certo.

E amanhã também vai estourar uma bomba na escola, porque hoje, antes de vir embora pra casa, deixei na escrivaninha do Chefe Siciliano uma cartinha muito, mas muito irritada mesmo, que ele só vai ler amanhã de manhã. Acontece que todo mês é a mesma lenga-lenga: em vez de deixar meu cheque com a secretária no dia 15, que é o dia de pagamento, ele fica empurrando com a barriga. Quer entregar o cheque pessoalmente, mas esquece que nem todo professor vai todo dia à escola, e que muito freqüentemente ele mesmo não está lá, ou então está ocupado. Já vi VÁRIOS outros professores se irritarem porque vieram lá dos cafundós pegar a grana e ele tinha ido sei lá onde sem deixar nada, nem dinheiro, nem recado com a secretária. Ou seja, acabamos recebendo sempre em torno do dia 20. Uma professora muito timidinha ficou TRÊS MESES sem receber, porque tinha vergonha de ir lá pedir o dinheiro pra ele, e ele obviamente não lembrava que tinha que pagar.

Além disso tudo, quando vou trocar o cheque a garota do banco, que a essa altura do campeonato já me conhece, tem que ligar pra agência da escola pra pedir pra liberar os fundos. Papelão. Mas o fiasco maior foi no mês passado. A escola fechou pra férias dia 5 e só reabriu dia 29. Eu ainda consegui falar com ele antes disso, e recebi um cheque pré-datado (aqui se diz pós-datado) pro dia 16 (dia 15 foi feriado). Ora bolas, eu viajei dia 12 (e ele sabia); poderia ter feito a gentileza de antecipar, só esse mês, o salário pro dia 12, né? Até porque, pelo meu tipo de contrato, não tenho direito a férias. Não, jacaré, fez pro dia 16. Resultado: dei pro Ettore trocar e depositar, só que o cheque era non trasferibile, o que significa que ninguém pode trocar em meu nome. Então ele depositou diretamente o cheque na minha conta. Só que tem um pequeno detalhe bancário neanderthalense botense: um cheque de banco diferente do meu leva SETE DIAS ÚTEIS pra cair na conta. Resultado: viajei sem um tostão sequer. Ainda bem que em Paris as lojas estavam todas fechadas, senão teria cortado os pulsos. Mas não é só isso!!! O cheque não tinha fundos!!! Bateu, voltou, bateu, voltou, e finalmente foi dado como estornado (existe isso em português?). Ou seja, fiquei no negativo. Como meu chefe é muito avançadinho, como todo italiano (cof cof), não tem online banking, e não tinha como saber que não tinha dinheiro na conta e que o cheque tinha batido e voltado. No lugar dele, um chefe decente teria feito um DOC e cancelado o cheque, ou, se não fosse possível o cancelamento, depois eu devolveria o valor do cheque, quando finalmente caísse muito depois do DOC. Não, jacaré, simples e correto demais. EU é que perdi manhãs inteiras no telefone com ele, com a secretária, com a gerente dos correios (minha conta é no banco dos correios), pra tentar descobrir se o dinheiro ia cair na conta ou não – EU, porque da escola ninguém me ligou pra dizer nada, ninguém correu atrás, e acabou que quem resolveu o problema fui eu. Resultado: o dinheiro só foi entrar dia TRÊS. Ora, faça-me o favor! Como se diz aqui, signori si nasce. Quê que adianta usar terno, colete e gravata se você não paga os seus funcionários em dia? Vá tomar banho!

Sei é que essa história me irritou tanto – não tanto pela falta da grana, que nem era tanta, mas por princípio mesmo – que fiquei até com dor de estômago. Coisa rara, porque eu normalmente não somatizo nada. Que ódio! Passei uma semana batendo porta e rosnando. E ele ainda se despede no telefone dizendo ciao, bella. Mas vá catar coquinho!

Então foi isso. Deixei uma carta desaforada na escrivaninha dele e quero só ver qual vai ser a reação. Não gostaria de sair de lá, porque gosto do meu trabalho, faço bem, gosto dos meus companheiros da escola e estou cheia de turmas, além do que é muito cômodo pra mim trabalhar em Ponte San Giovanni e Perugia – ainda mais se eu começar a estudar de novo, praqueles lados. Mas também não seria o fim do mundo se eu saísse: tem a escola de Foligno e uma nova de Santa Maria com quem já falei e estou esperando só a confirmação de uma turma de português, e já mandei meu currículo pra uma de Assis também. Fora que eu sou esperta e versátil e morrer de fome eu sei que não morro. Estou de saco cheio de ser passada pra trás por causa dessa gente que não paga. Na oficina é a mesma coisa: todo mundo tem sempre uma desculpa pra atrasar o pagamento. Não tem tempo de vir trazer o cheque pessoalmente? Manda pelo correio, pombas! Faz um doc, nem precisa de internet, manda um fax pro banco, fala com o gerente, sei lá! Eu acho tão nojento deixar fornecedor e funcionário sem pagamento que não consigo conceber como alguém pode sequer ter essa idéia. Mas o mundo é cheio de gente estranha. E eu já estou por aqui com esse culto à desonestidade dos italianos.

aiai

Gianni está furibundo.

Em março, no caminho pra Roma pra pegar o avião pra Buenos Aires, levamos uma multa. Quem dirigia era a Chiara, a pior motorista que eu já vi ;) Lembro que quando vimos o pardal era tarde demais, e imaginamos que viria uma multinha básica.

Só que aqui a multa chega quase três meses depois da infração, quando você nem lembra direito do que aconteceu, onde, quando, por quê. E em letras nanominimicroscópicas, no pé da página, está escrito que se alguém não se apresentar no DETRAN local dentro de um mês pra declarar quem estava dirigindo naquele momento, ou seja, se alguém não se oferecer pra perder os pontos na carteira de motorista, chega uma nova multa, de mais de trezentos euros.

Olha aí por que eu digo que é importante fazer as coisas pelo motivo justo.

O governo não aplica multas nem muda as leis de trânsito porque quer educar a galera e evitar acidentes. Quer multar o máximo de otários possível, pra arrecadar uma graninha. E aí fode quem não tem nada a ver com o pato, ou quem até tem, mas tem boa vontade e coisa e tal. E a Dri ainda acha estranho que italiano adore sonegar um impostinho… ;)

E Berlusconi ainda por cima passa o fim de semana com o Putin e a coisa mais interessante que consegue dizer é “Mesmo fazendo um sacrifício, e olha que é um sacrifício eloooorme, eu vou me candidatar de novo. Porque é necessário, já que não há ninguém que possa assumir o cargo de Presidente do Conselho, ninguém como eu.” A sorte de certas pessoas é que eu não ando armadaaaaaaaaa… lalalalaaaaaaaa…

A coisa mais interessante desse encontro ridículo é o labrador preto maravilhosamente rebolativo que caminhava entre os presidentes e suas primeiras-damas num deck sobre o Báltico. Lindo :)