mercadinho

Ontem fui “fazer compras” na Arianna. Ela não é, nem de longe, a mamma italiana média, mas não deixa de ser uma mulher italiana média, o que significa que a casa dela vive entupida de comida desnecessária. Toda vez que passo lá acabo levando um pé de alface fresquinha da horta, umas dúzias de ovos de galinha (ou de pata, se a pata estiver de bom humor), uma bistequinha de carneiro, uns peitos de frango que não cabem mais no freezer, uns pedaços de pizza feita em casa pra merenda de meio da manhã.

Já no domingo eu tinha avisado que no dia seguinte passaria pra medir a pressão da avó do Mirco e pra pegar a mudinha de serpillo, uma erva de cozinha, que ela tinha me prometido. Passei no final da manhã, e acabei levando pra casa uma dúzia e meia de ovos frescos, um potinho de ervilhas frescas colhidas da horta, um pouco de molho de tomate do domingo que tinha sobrado, e um saco de macarrão borboleta feito em casa, também do domingo, fresco, pra congelar. Entramos no papo de planta pra cá, planta pra lá, serpillo isso, serpillo aquilo, descemos pro quintal e papo vai, papo vem, acabei levando também mudas de rúcola selvagem, arrancadas a facadas de trás da moita de lavanda que o Leo derrubou de tanto cavar por baixo, umas mudinhas de um tipo de pianta grassa que ela roubou da IKEA há dois anos e pegou superbem na casa dela, duas plantinhas que dão flores o ano inteiro e eu nunca vi no Brasil, e mais um maço de rúcola selvagem, já grande, pra botar na salada. As favas ainda não estão prontas, as ervilhas ainda estão pequenas, as batatas idem, os tomates acabaram de ser plantados, salada eu já tinha em casa.

Antes que me perguntem, não sei o que é serpillo. É cheirosinho e usa-se pra assados, mas eu tenho em casa só porque gosto da cara dele mesmo, porque o Mirco odeia toda e qualquer ervinha na comida e eu só tenho permissão pra usar alecrim. Agora só preciso decidir o que plantar no grande vaso das tulipas, que já murcharam e só estou esperando que sequem de vez pra tirar os bulbos e levar pra Arianna plantar no quintal.

Festa dei Ceri – Gubbio

Sábado à noite, durante a pizza, Roberta veio com a idéia de ir a Gubbio no dia seguinte. O namorado dela vai pescar todos os domingos, e Gianni e Chiara iam a Lucca visitar parentes, de modo que resolvemos ir eu, Mirco e Robertinha. Todos nós já tínhamos estado em Gubbio, mas nunca no dia 15 de maio, dia de festa na cidade.

Mas vamos por partes. Gubbio é uma cidade pequena (30 e poucos mil habitantes), que repousa no monte Ingino, e fica a uns 45 km daqui. Dela diz-se que é terra de doidos, e que pra provar que é maluco o visitante deve correr três vezes em volta da fonte mais famosa da cidade. As lojas de souvenir vendem certificados de maluco em meio aos tradicionais balangandãs cafonas que japonês e alemão adora. Estive lá pela primeira vez em 2002, com duas colegas de turma da Università per Stranieri, Susanne, suíça, e Lihn, vietnamita. Até rolou uma excursão com a faculdade no 15 de maio daquele ano, e não me lembro por que não fomos. Mas enfim, a cidade é lindíssima e há muito pra ver, mesmo fora da festa. Mas a Festa dei Ceri é, diz-se, a mais antiga manifestação deste tipo na Itália, e é uma tradição tão… singular, que os três “ceri”, que já já explico, são o símbolo da região Umbria.

Mas então. O santo padroeiro da cidade é Santo Ubaldo, que morreu no dia 16 de maio de 1160. Desde então faz-se a festa no dia 15. A coisa consiste no seguinte, e depois vejam se neguinho não tem razão quando diz que todo eugubino (quem nasce em Gubbio) é maluco: há esses três “ceri” (pronúncia tchêri), que são uns negócios altos, de madeira, pesando 400 quilos cada um. Cada cero é formado por dois prismas octogonais encaixados um sobre o outro. No alto do cero empoleira-se a estátua de um dos santos que participam da corrida: Santo Ubaldo, vestido de dourado, São Jorge, de vermelho, e Santo Antônio Abade, de preto, nessa ordem. A corrida não é competitiva, ou seja, os santos chegam sempre na mesma ordem. O objetivo é simplesmente chegar o mais rápido possível na basílica de Santo Ubaldo, que fica lá em cima do monte – mas lá em cima MESMO. Cada cero fica apoiado verticalmente em uma plataforma, que é carregada nos ombros pelos ceraioli, que usam camisas de cetim com a cor do seu santo.

Os sites oficiais da festa dão duas explicações possíveis pra sua origem: uma é menos documentada e menos provável, e teria origens pagãs, em homenagem à deusa romana Cereres ou à deusa umbra (leia-se mais ou menos etrusca) Cerfus. A hipótese mais aceita é a de que a festa nasceu como homenagem ao bispo de Gubbio, o tal Santo Ubaldo, que parece que era muito querido. “Cero” é um jeito antigo de dizer “vela”, o que torna possível que a origem dessa maluquice toda tenha sido simplesmente o fato de que o pessoal saiu em procissão, carregando velas, quando o bispo morreu. Eu ouvi outra versão uma vez, mas que não achei em nenhum outro lugar: que os ceri são “corridos” pela cidade porque historicamente alguém teve que correr pra levar uma mensagem ao santo, que estava em fim de vida, sei lá. Acho que me enganaram.

De qualquer maneira, a coisa toda é interessantíssima. O dia começa muito cedo: os capitães dos ceri são acordados às 5:30 ao som de tambores; esses dois são os responsáveis pela parte organizativa da festa. Às oito e meia, na igreja dos Muratori (pedreiros), os ceraioli participam da missa, e logo depois os santos saem em procissão, que atravessa as principais ruas da cidade, e termina no Palazzo dei Consoli, na Piazza Grande, onde os ceri, que ficam o ano todo enfurnados na basílica, já estão esperando. Às nove e meia toma-se o lanchinho da manhã, à base de peixe. Às onze, da Porta Castello (lembrem-se de que é uma cidade velha pra cacete e ainda há muros, portas, fortalezas, essas coisas), parte o desfile dos ceraioli, com bandas de música e coisa e tal. Aos quinze pro meio-dia os chefes da cidade, em roupas medievais, entregam as chaves da cidade ao Primeiro Capitão, um gesto simbólico pra lembrar a todos que por um dia o poder está nas mãos do povo. Dali os ceri descem as escadarias do Palazzo até a praça. Os sinos do Campanone, a torre campanária, começam a tocar, sinalizando o início da Alzata (“levantada”): a um sinal dos chefes dos ceraioli, esses últimos levantam os ceri, que ficam em posição vertical. E dali passeiam pela cidade, exibindo-se, e homenageando as antigas e tradicionais famílias de ceraioli. Antigamente quem participava da festa não escolhia o santo, mas era meio que forçado a carregar o cero do santo que apadroava a sua profissão: Santo Ubaldo é o padroeiro dos pedreiros, São Jorge, dos comerciantes, e Santo Antônio Abade, dos camponeses e estudantes. Com o passar do tempo e com novas profissões na parada, a coisa foi meio que passando de pai pra filho, como é até hoje: famílias tradicionalmente santubaldenses dão origem a ceraioli santubaldenses, e por aí vai.

Às duas da tarde os ceri são deixados perto de uma das portas da cidade, enquanto o pessoal vai almoçar. A farofada toda dura até as quatro e meia, cinco da tarde, quando novamente parte a procissão de Santo Ubaldo, percorrendo todo o itinerário da corrida e terminando na via Dante. Ali o bispo abençoa os ceri, que então, às seis da tarde em ponto, começam a corrida.

Nós chegamos às três da tarde, e deu tempo só de tomar um sorvete, dar umas voltinhas e tirar umas fotos, porque depois tivemos que sentar a bunda no muro da Piazza Grande pra pegar lugar. Essa piazza é uma das minhas preferidas entre todas as italianas que já visitei. Porque o Palazzo dei Consoli é lindíssimo, e porque a praça fica no alto da cidade, dando uma vista deliciosa dos telhados das casas antiqüíssimas, com suas chaminés, o musgo que cobre as telhas, as antenas de TV, ninhos de passarinhos. Lá no fundo, o vale, pouco habitado – perto de Gubbio não há nenhuma cidade maiorzinha, é uma desolação só. Mas então: sentamos no murinho e ficamos observando o pessoal passando lá embaixo na rua, todo mundo com a camisa da cor do seu santo e com o obrigatório lenço vermelho no pescoço. Estávamos bem embaixo da torre campanária, e quando os sinos começaram a tocar todo mundo esticou o pescoço pra olhar lá pra cima e ver os meninos, todos de calça branca e camisa colorida, tocando o sino gigantesco. É muito maneiro, mas depois de meia hora começa a encher o saco. A praça começa a encher, mas esperávamos mais gente. É porque, marinheiros de primeira viagem, não sabíamos nada sobre a história da festa. Gente tinha, até demais, só que a galera participa da festa o dia inteiro, e vai atrás dos ceri, enquanto nós ficamos plantados ali no murinho pra não perder o lugar e a visão privilegiada. Muita gente deixa escadas, daquelas que usamos pra trocar lâmpada e limpar janela, acorrentadas nas grades dos prédios da praça. Na hora da bagunça, sobem nelas pra ver melhor. Vai ser criativo assim na China, putz.

Às seis em ponto ouvimos um roaaaaaaaaaaaaaaaaaar, um barulho de Maracanã lotado, de público de show do U2 ao ouvir os primeiros acordes, uma coisa assustadora – mais ainda porque vinha láaaaaaaaaaaaa de baixo, porque a corrida começa numa rua paralela à que passa logo abaixo da praça. Lá longe, na Piazza 40 Martiri, vemos aqueles negócios estranhíssimos, com os santos coloridos aboletados em cima, passando numa velocidade impressionante, e aquele murundu de gente colorida seguindo atrás, correndo feito doidos. É coisa de maluco mesmo, porque não tem o menor sentido, mas vou dizer um negócio pra vocês: foi uma das coisas mais emocionantes que já vi aqui na Itália. Fiquei comovidíssima, a empolgação das pessoas é contagiante, e o fato de que não é uma competição, mas só uma maluquice mesmo, só torna as coisas mais interessantes. O percurso inteiro da corrida dura duas horas, e inclui umas pausas pra neguinho não cair duro de tanto correr carregando peso. Não sei como funciona direito, mas é um mega trabalho em equipe, porque quando o ceraiolo (é sempre homem, mulher só fica na torcida e olhe lá) sente que não agüenta mais, ele simplesmente larga o negócio e sai de baixo da plataforma, sem nenhum sinal, sem avisar, sem pedir, porque sabe que alguém imediatamente o substitui. A expressão de cansaço e sofrimento físico no rosto dos ceraioli é impressionante. O grande lance da coisa é não deixar o cero cair, até porque levantar um tarugo daqueles não é brincadeira de criança. Se cair, os outros santos têm que esperar.

Mas então; depois da partida, entrevemos os ceri atravessando ruas e becos e desaparecendo novamente por trás de casas, e por um longuíssimo tempo não se ouve mais nada; sabemos que os ceri tão lá correndo, mas não vemos por onde, e de repente o roaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar vem vindo da rua que desemboca na Piazza Grande, onde estávamos, e lá vêm aqueles negócios esquisitos, com os santos balançando lá no alto, ensandecidos, pela praça. Aí é que entendemos onde tava todo mundo: tava era correndo atrás dos santos, porque junto com eles chegou uma cabeçada, mas uma cabeçada fenomenal. Os santos dão três voltas na bandeirona vermelha plantada no meio da praça, e seguem adiante, pra depois subir uma ladeira fenomenal, até chegar no cocoruto do Monte, onde fica a basílica.

Caramba, é MUITO maneiro. MUITO, MUITO, MUITO. Vale a pena de verdade. Se alguém aí tem intenção de vir aqui pro fim do mundo no ano que vem, faça de tudo pra conseguir estar aqui no próximo 15 de maio e ver essa maluquice.

Foi tudo perfeito: domingo, todo mundo descansado, Robertinha que é ótima companhia, o dia tava lindo, com sol mas com vento fresco, não pegamos trânsito (o que teria sido um horror porque a única estrada possível pra Gubbio é terrivelmente cheia de curvas, subidas e descidas, a ponto de ficar impraticável no inverno, se nevar demais), e na volta ainda paramos pra comer torta al testo, que em Gubbio se chama crescia (pronúncia crêsha), num quiosquinho tabajara que vende torta há quarenta anos. Negócio de família, é claro: uma velha no forno a lenha, cozinhando a torta, cuja massa é esticada em um testo, ou plataforma, de cimento e coberta com cinzas – não tenham nojo, por favor, é uma delíciaaaaaa; marido e mulher no caixa e alternando-se pra cortar fatias de queijo e de lingüiça na brasa, e um velho coroco encarregado de cortar, à mão (dizem que fica mais gostoso, eu não vejo diferença), mortadela e prosciutto crudo. Sentamos nuns banquinhos do lado de fora pra comer nossas tortas, as colinas verdejantes de trigo à nossa frente, vendo passar outra velhinha, que faz o trajeto forno-caixa duzentas mil vezes por dia carregando sempre uma torta de cada vez… Ô maravilha!

E então ficou combinado que queremos ver as outras festas umbras mais conhecidas: no fim do mês tem a Infiorata di Spello, que são aqueles tapetes de flor no chão da cidade (eu acho cafonérrimo mas diz a Roberta que a graça está em ir na noite anterior, pra ver o pessoal montando os desenhos com as pétalas), em junho tem as Gaite di Bevagna, quando a cidade inteira participa de uma encenação absolutamente realística da vida medieval, e acho que ainda tem a segunda edição anual da Quintana em Foligno, torneio medieval com cavalos, lanças etc. Perdemos o Calendimaggio, a festa tradicional de Assis, em que competem a Nobilissima Parte di Sopra (literalmente Nobilíssima Parte de Cima) e a Magnifica Parte di Sotto (Magnífica Parte de Baixo), mas a festa de Bevagna não quero perder de jeito nenhum.

Pra quem ficou curioso sobre a festa de Gubbio, mais informações aqui e aqui (ambas em italiano, sorry).

Hear, hear

As três principais notícias do dia aqui na Bota são de arrepiar os cabelos.

Angelo Izzo, que há alguns anos estuprou, torturou e matou um monte de gente e estava devidamente preso, recebeu liberdade condicional por bom comportamento. A primeira coisa que fez quando saiu foi matar uma mulher e sua filha de 14 anos. A única pessoa que conseguiu sobreviver a um ataque seu e de seu bando, uma mulher que nas entrevistas parece ser muito esperta e justamente indignada até a raiz dos cabelos, só conseguiu sair viva depois de 30 horas trancada num banheiro sem ventilação e mais não sei quantas na mala de um carro porque se fingiu de morta, depois que Izzo a estrangulou e encheu de porrada. “Ele não é louco coisa nenhuma”, ela diz. “Nem louco e nem bobo. Gosta de causar sofrimento aos outros, planeja tudo com cuidado. Não é louco. Doente, mas não louco, e não sei no que os juízes estavam pensando quando deixaram aquela coisa sair da prisão.” A foto do então jovem Izzo algemado, acompanhado de policiais a caminho da prisão, mostra um cabeçudo de olhos claros, camisa listrada e um sorriso do qual nem Hannibal Lecter seria capaz. Mais aqui (em italiano).

Há 36 anos, uma bomba explodiu numa agência de um banco nem sei onde, matando 17 pessoas. Há várias hipóteses políticas, e exatamente por isso ao longo desses anos provas sumiram, pessoas calaram, e nada se descobriu de concreto sobre quem plantou o raio da bomba. Hoje saiu a sentença final: oficialmente, NÃO HÁ CULPADOS. E AS FAMÍLIAS DAS VÍTIMAS SERÃO OBRIGADAS A PAGAR AS DESPESAS LEGAIS QUE ROLARAM NESTES 36 ANOS. Você não leu errado, é isso mesmo. Não há culpados; a bomba se materializou do nada, veio andando com suas próprias perninhas, se escondeu na agência, apertou o botãozinho on/off e explodiu, tudo sozinha, de vontade própria. E as famílias das pessoas que nada tinham a ver com a história e morreram na explosão vão ter que arcar com 36 anos de despesas legais. Mais detalhes aqui (em italiano).

Como era de se esperar, a versão italiana sobre como morreu Calipari, que levava a jornalista comunista Giuliana Sgrena pra casa depois de semanas de seqüestro no Iraque, não bate com a versão americana. O carro que levava Sgrena foi baleado por soldados americanos, que dizem ter atirado porque o carro vinha em alta velocidade e não se identificou ao passar por essa espécie de blitz (blocking position). Sgrena rebate dizendo que não iam a mais de 50 km/h, que o blocking point era feito por soldados estressados, nervosos e mal treinados, e que acha que o alvo era ela, porque sabia demais (e é comunista e anti-EUA). Calipari era um fodão, chefe de departamentos de segurança e coisas do gênero, herói militar, e sua morte foi um baque por aqui. Mais ainda: segundo o relatório italiano, no relatório americano faltam muitas, mas muitas informações, omitidas propositalmente. Mais ainda: o carro, um Toyota Corolla, foi removido do local antes que sua posição exata pudesse ser determinada e fotos decentes batidas, de modo que não é possível determinar com exatidão a distância da qual os tiros foram feitos, a velocidade em que o carro vinha, a trajetória precisa das balas, etc e tal. Aqui (em italiano).

Nada mais me surpreende por aqui, juro.

primo maggio

Primeiro de maio aqui não é só um dia no qual não se trabalha, é festa mesmo. Normalmente os empregadores pagam um belo almoço pros funcionários. No caso das pequenas empresas, os proprietários, que trabalham junto com seus operários, não são tãaao mais ricos do que eles, e muitas vezes estudaram menos do que eles, normalmente participam do almoço. No ano passado comemos peixe em um restaurante especializado em outras coisas; o almoço saiu caríssimo e não foi nenhuma Brastemp. Esse ano, com as imensas despesas extras de tabelião e advogado pra transferir a oficina pro nome do Mirco, e com os dois primeiros meses do ano muito lentos em termos de trabalho, resolvemos economizar e investir no seguro: a comida da Arianna. Então ontem todo mundo foi almoçar em Santa Maria.

Chegamos às dez e meia pra dar uma mãozinha, a tempo de montar uma mesa imensa na garagem, onde é sempre fresco. Do lado de fora tava um calor desgraçado, e no campo ao lado da casa demos de cara com um cercadinho improvisadíssimo onde os gansos foram colocados pra pastar – juro. Faz bem pra eles (e economiza-se em ração) comer capim, então os bichos ficaram o dia inteiro ali no cercadinho, pastando e se refrescando numa bacia de água, e depois descansando à sombra de um guarda-chuva que a fofa da avó do Mirco teve a idéia de deixar aberto, apoiado no chão.

Depois foi o sólito catar pratos e copos de plástico, guardanapos, encher as garrafas com a água do filtro, passar o vinho dos garrafões de 5 litros pra garrafas menores, preparar os antipasti, descascar batatas. Os bichos já estavam no forno – ganso, frango, carne de carneiro e, tchan tchan tchan tchan, cabeça de carneiro. Com dentinho e tudo. Nada de porco porque há dois marroquinos no rol dos funcionários. Arianna já tinha feito dois pirex de Tiramisù e uma torta de geléia, a massa do macarrão tava pronta e era só passar na maquininha pra cortar em tagliatelle, a salada já tava cortadinha e só faltava temperar. O pessoal comeu feito louco. Só faltou o Hugue, um rapaz do Congo que é o novo aprendiz da oficina. O menino é uma gracinha, incrivelmente educado e calado, mas quando fala a voz que sai é forte como um trovão, com forte sotaque francês – ele ainda fala pouquíssimo de italiano, chegou na Itália só há alguns meses. Tem olhos bons e um sorriso que lhe ilumina o rosto inteiro. E tem o maior orgulho da carapinha: faz vir do Congo um produto pra deixar os minimicrocachos ainda mais definidos. Mirco brinca com ele dizendo que também quer usar, e ele responde, não, não, capelli non uguali, non uguali, naquela voz grossa. Na hora do almoço ele sempre toma banho no chuveiro da oficina, porque sente muito calor. E quando volta pra casa, de carona com o Ettore, vai todo bem vestidinho, de jaqueta de couro e tênis prateados. Outro dia Mirco veio dizer que ele sabia cozinhar, e perguntei o que é que ele sabia fazer. Ele disse que não adiantava explicar, porque eu provavelmente não conhecia nada. Ah, é? Vamos ver… Aposto que no Congo você comia muita banana, manga e mamão, mandioca e abacate e feijão. Ele arregalou os olhos e perguntou como eu é que eu conhecia essas coisas; não sabia que eu era brasileira. Depois começou a rir quando os marroquinos, lá do outro lado da oficina, falaram que quem come feijão fica perigoso por causa dos “fogos de artifício”. O menino tem 18 anos mas é de longe o mais educado de todos na oficina, e o mais esperto também, pelo que o Mirco fala. Vai ser provavelmente o substuto do Dejan, o eslavo que vai embora mês que vem, pra prestar serviço militar obrigatório na Sérvia. Pois então, o Hughe não foi ao almoço porque tinha um batizado não sei onde, mas veio o Yavo, ex-funcionário, nativo da Costa do Marfim, uma figuraça que fala numa língua que só ele entende, mistura de francês, italiano, dialeto perugino e seu dialeto africano. Fala de religião o tempo todo mas é na boa, sem pregar, sem torrar a paciência. Ficamos lá batendo papo e brincando com os cachorros, que roíam os crânios de carneiro por baixo da mesa, até o final da tarde. Acabou sendo um almoço muito mais divertido do que o normal almoço de domingo na casa dos sogros, que ultimamente anda sendo um martírio pra mim.

Voltamos pra casa e vimos Man on Fire no DVD. Gostei muito, de verdade, ainda que eu ache que o Denzel Washington é igual ao Lima Duarte, representa sempre o mesmo papel em tudo que é filme. Ainda consegui sair pra correr enquanto o Mirco dormia no sofá, quando voltei tavam o Mario Belli (o dono da floricultura de S. Maria) com a noiva em casa batendo papo, esqueci de perguntar a ele se conhecia a minha planta misteriosa (já tirei foto, Lu, mas tô com preguiça de botar no ar, amanhã, amanhã), me empanturrei de iogurte em vez de jantar, e ainda tive saco pra terminar um livro muito ruinzinho antes de dormir. Mais tarde explico melhor.

novas aventuras burocráticas

Eu não queria muito contar essa história, mas não resisto: na terça-feira depois do meu aniversário, bati com o carro. Foi em Perugia; eu tava saindo do centro, depois de uma aula com o Aluno Endocrinologista, e pegando a superstrada pra voltar pra escola e dar aula pros Três Mosqueteiros. Alguma coisa entrou no meu olho, um bicho, sei lá, perdi o controle do carro, subi no canteiro central, bati nos pés da placa que mandava ficar na esquerda quem queria ir a Perugia, Assis, Foligno, e direita quem queria ir a Arezzo, dei um giro de 180 graus e parei. Como um pouco antes tem um sinal de trânsito, e ali tem muito movimento e o trânsito é sempre lento, não me machuquei, e o cara que vinha logo atrás de mim teve mais do que tempo pra perceber o que tava acontecendo e meter o pé no freio. Comigo não aconteceu bissolutamente nada, só bati com a mão esquerda na porta (muito menos grave do que as topadas que eu vivo dando por aí), mas o carro ficou completamente detonado. Não porque a batida tenha sido violenta, mas porque a Fiat é mal feita pra cacete e quando subi no canteiro a parte inferior direita foi pras cucuias. O carro já tava velho, valia pouco, e não vale a pena consertar. Então peguei a Uno da oficina.

Mas tudo isso, que no final das contas não interessa muito, pra explicar a maratona que veio depois. Porque quando o seu carro sobe no telhado você tem que se desfazer dele de alguma maneira. Ou então juntar toda uma papelada e comunicar às autoridades competentes que o carro não vai ser mandado pra um ferro-velho autorizado, mas também não vai ficar abandonado no seu quintal, pegando chuva e funcionando como ponto de encontro pra ratos, insetos e afins. Porque é proibido, entende. Então você tem que ir ao P.R.A. (Pubblico Registro di Automobili), que é maaaaais ou menos como o Detran, levar as placas e os documentos do carro e mais um monte de chatices, e declarar o que você vai fazer com ele.

O problema é que todo mundo anda muito ocupado ultimamente, e não tivemos tempo de investigar direito o que tínhamos que fazer. O IPVA vencia amanhã, e a mulherzinha do Automobile Club Italiano me disse que tínhamos que entregar as placas antes do dia 30 pra não ter que pagar o imposto. Mas não falou nada dessa coisa da rotamazione (a destruição do carro), de ser obrigatório mandar o bicho pra um ferro-velho, nem de coisa nenhuma. Quando liguei pra central do ACI me disseram que se eu declarar que o carro ficar na minha garagem, não posso nem vender as peças, porque se vier um fiscal checar eu levo uma multa. Ora, o carro está em perfeito estado fora a parte batida, e afinal de contas a oficina não é especializada em carros mas sempre rola algum amigo que deu uma batidinha, ou então quebraram um farol, ou arranharam a lateral, ou uma pedrinha que rachou o vidro, e ter peças de reposição do carro mais vendido na Itália não seria nada mau. Mas não, jacaré, não pode. Ligamos pra todos os donos de ferro-velho da zona, todos clientes da oficina, e todos disseram a mesma coisa: quero o carro inteiro, senão pra mim não vale a pena, porque eu vivo é de vender as peças. Cacetes tatuados! A manhã passando e eu ainda na oficina, ouvindo o Mirco e o Ettore se esgoelando no telefone tentando entender o que fazer. No fim das contas alguma alma caridosa explicou que se eu fosse ao ACI pagaria 60 euros, e se fosse diretamente ao P.R.A., só a metade, e eles ainda saberiam explicar melhor a coisa toda. Essa alma caridosa já foi dono de ferro-velho, mas agora tem uma outra atividade que não sei qual é, mas de qualquer maneira se prontificou a resolver a situação – normalmente o ferro-velho COBRA pra fazer a rotamazione, e ainda por cima revende as peças do seu carro batido; esse não cobrou nada mas ficou com o carro. Tudo resolvido, lá fui eu ao P.R.A., onde já estivera outras vezes, pra entregar as placas.

Chegando lá, com procuração do Mirco e quinhentos documentos xerocados, me dizem que não posso fazer nada porque não sou a proprietária. Eram dez e meia da manhã e um cartaz avisava que em vez de fechar ao meio-dia e meia, ontem fechavam uma hora antes, por motivo de assembléia do pessoal. Fiquei sem saber o que fazer, expliquei pra mulher, que por sorte é muito prestativa, que tinha que resolver a coisa ali na hora senão teria que pagar IPVA tudo de novo, que o proprietário do carro estava rodando ali em Perugia (mentira) e eu poderia encontrar com ele e dar os documentos pra ele assinar (leia-se eu iria ficar fazendo hora sentada no meu carro e fazer um rabisco qualquer imitando a assinatura do Mirco), que do escritório da oficina poderiam mandar por fax uma xerox da identidade do Mirco, mas nada feito. Só faltei chorar através do vidro, até que um outro funcionário resolveu chamar o chefe, explicou a situação, e ficou resolvido que eu poderia fazer a coisa toda sim, desde que assinasse um certificado de proprietaria non intestataria, ou seja, que eu uso (usava…) o carro direto mesmo ele não sendo oficialmente meu. Agora me diz: por que raios todos os funcionários de uma repartição pública não têm as mesmas informações? Por que essa mania de cada um dizer uma coisa diferente? Ô coisa chata!

Felizmente consegui entregar e preencher e assinar tudo antes das onze e meia, senti uma pontada de tristeza ao ver as plaquinhas da nossa Punto querida jogadas ali em meio a muitas outras, e depois pra compensar fui direto pra Libreria Grande gastar meu gift certificate. Comprei Middlesex (Jeffrey Eugenides, o autor de Virgin Suicides), The Kite Runner (Khaled Hosseini), e o primeiro livro da série The No. 1 Ladies’ Detective Agency, de Alexander McCall Smith. E pronto.

asparagi di bosco

Hoje é dia de praticar um dos mais populares esportes primaveris, colher aspargos selvagens. O tempo tá uma droga, mas não tá com cara de que vá chover. Ontem tava pior, e mesmo assim encaramos o Monte Subasio com os cachorros, a FeRnanda e a cachorrinha dela, a Dadá. Um vento que te levava embora, só nós, três retardados cachorrentos, no alto do monte, uma dor de ouvido do cacete, jogando garrafas de plástico pro Legolas pegar.

Hoje o plano inicial era ir a Florença dar umas voltas com Gianni e Chiara, mas eles desanimaram e resolvemos então ir catar asparagi di bosco lá em Bastardo, onde um colega de trabalho do Gianni mora. Como o tempo tá feio e o frio é quase de outono, não é perigoso. No calor, serpentes venenosas abundam entre os arbustos e caem das árvores dentro da sua camisa, então precisa enfiar as calças por dentro das botas e usar camisa de gola alta e chapéu, e afastar arbustos com um bastão, jamais com as mãos.

Eu juro que queria ir, mas, fêmea que sou, fui jogada pra escanteio. Mirco saiu às nove da manhã, e eu só vou ao meio-dia, com Chiara e Roberta, praticamente só pra almoçar. Melhor. Estou cansada e acho que tem uma gripe se esforçando muito pra me pegar. Ontem tava tão sem saco que nem fiz faxina, só passei o aspirador de pó igual à minha cara e mais nada. Agora são dez e vinte e ainda tenho que limpar o banheiro e transplantar uma tulipa estranha que está apertadíssima no vaso em que a coloquei, achando que cresceria para o alto e avante, esbelta como todas as tulipas. Mas essa é estranha e é toda repolhuda, ocupa tanto espaço que o outro bulbo, no mesmo vaso, ainda não conseguiu dar as caras. O detalhe é que o saco de terra ficou no carro, e cadê a vontade de descer pra pegar?

Caraca, deve ser a primavera que me pegou de jeito esse ano, como faz com tudo mundo aqui. Ou então são os cromossomos baianos herdados de vovô que estão se ativando pra me deixar leeeeeeenta.

ciao, inverno

A primavera chegou de vez. Eu sei porque a chegada da primavera aqui no interior da Birmânia traz sempre os mesmos sintomas, como se o mundo mudasse inteiramente: o gramado dos jardins atrás do meu prédio tá coberto de florezinhas brancas e amarelas que parecem ter sido polvilhadas ali, de tantas que são; ouvem-se crianças brincando no jardim e a vizinha gorda e fofoqueira chamando o cachorro, Jimmieeeeeeeeeeeeeeee!; à tardinha e no fim de semana a muvuca social no bar embaixo do prédio ao lado é intensa; as pessoas andam tomando sorvete pelas ruas; a galera maneira da terceira idade já tirou as bicicletas das garagens e vai passer pela cidade, os homens de boina e paletó, SEMPRE, as mulheres de escova feita, meia-calça cor da pele e sapatos com meio-salto; estender a roupa no varal na varanda não é mais um suplício que termina invariavelmente com mãos vermelhas e doloridas e o nariz escorrendo por causa do frio; o sol esquenta mas a brisa é fresca; o radicchio, verdura invernal, começa a sumir dos supermercados e o que não sumiu fica mais caro, dando gradualmente lugar às favas, às ervilhas frescas, mais tarde às abobrinhas e berinjelas, e depois ainda aos tomates; o pessoal começa a reclamar do efeito que a primavera tem sobre a personalidade (aparentemente deixa as pessoas lentas e levemente melancólicas; definitivamente não é o meu caso); posso sair de casa com o cabelo molhado sem que a minha cabeça caia necrosada depois da primeira rajada de vento gelado; os cravos da varanda, que por todo o inverno se mantiveram verdes, firmes e fortes, agora estão dando flor adoidado; água mineral e chá gelado (de limão e pêssego) não vão mais entrar em oferta até o próximo inverno; as garotas-propaganda de telefones celulares na TV ainda não estão de biquini mas deixaram de lado os casacões pra usar jaquetas de meia-estação; morremos de calor no sol mas ainda dormimos com edredom de penas de ganso e ainda temos que ligar o aquecedor elétrico pra esquentar o banheiro antes de tomar banho; ainda não dá pra perambular pela casa sem meia, mas tamos quase lá; o pessoal começa a se organizar pra colher aspargos selvagens nos domingos de sol.

Hoje e amanhã se vota aqui na Itália. Mirco vota numa escola atrás dos correios, e hoje, depois do almoço na Arianna (cappelletti com recheio de ricota e espinafre e molho de aspargos selvagens com creme de leite, depois peru e cabrito no forno a lenha), demos banho nos cachorros, encoleiramos o Leguinho, que está OBESO de tanto chocolate que comeu na semana da Páscoa (o Ettore admitiu que lhe dá essas merdas pra comer: “ele pede, o que que eu posso fazer?” ARGH!!!), e fomos a pé até essa escola. Sentei com o Leguinho do lado de fora, pegando um solzinho enquanto lia meu Camilleri, e todo mundo que passava achava graça nele todo sério sentado ao meu lado, olhando pra porta da escola esperando o Mirco sair.

O assunto da Bota é, há muitos dias, a situação do Papa. Ontem estávamos jantando peixe na Chiara quando aquele asqueroso do Bruno Vespa deu a notícia na RAI 1. A família da Chiara é muito religiosa e foi uma choradeira só. Eu fico chateada porque fico chateada até quando vejo os percevejos morrendo torrados quando caem no lustre da sala, mas, sendo absolutamente contra TUDO o que o Papa e qualquer outro líder religioso representa, não consigo me emocionar como acho que deveria, ou pelo menos como neguinho espera que eu me emocione.

Enfim, vou tomar banho porque estou com cheiro de cachorro molhado, e depois temos uns pepinos da oficina pra resolver antes de tocar pro cinema, se der vontade.

rir pra não chorar

E a notícia que não sai da boca do povo nesse início de semana é a do albanês e o trator. É assim, ó: um albanês entra, bêbado, numa boate de topless e go-go girls. Bebe ainda mais e começa a encher o saco das meninas e dos outros clientes. O albanês é chutado pra fora da boate. O albanês bêbado, e agora também puto da vida, rouba um trator que estava por ali dando sopa (a boate fica na zona industrial de Bastia, cujo asfalto está sendo renovado), vai ao estacionamento da boate, que divide um galpão com uma fábrica de portões, e começa a descer o pau nos carros estacionados ali em frente. Ontem à noite, quando soubemos da notícia, passamos por ali no caminho pra casa e vimos uma Fiat Multipla completamente detonada, e um gazebo de metal, da fábrica de portões , reduzido a uma massa disforme. A notícia saiu, obviamente, no telejornal regional, e nas filas do banco, dos correios, do supermercado, não se fala de outra coisa. Compreensível, porque 1) quando é imigrante que faz cagada (e cagada desse tipo é quase sempre imigrante que faz) vira logo notícia, 2) a história é tão maluca que não tem como alguém tê-la inventado, e 3) como aqui não acontece nada nunca, qualquer coisinha já vira logo OOOO evento do século. 2005 vai ser lembrado em Bastia como o ano que começou com o albanês e o trator.

friaca

Os meteorologistas afirmam que essa será a semana mais fria do ano por aqui. Ontem à noite houve picos de -23° C lá no norte, perto da Áustria. Hoje fiquei em casa pela manhã, passando roupa; às onze teria que estar em Perugia pra dar aula pro Aluno Endocrinologista, que ligou às dez e quinze pra dizer que achava melhor eu não ir, porque tava nevando muito e eu talvez não seria capaz de voltar pra casa com tranqüilidade. Quarentona Estressada, que também tinha aula da uma da tarde até as três, ficou empacada no buraco onde se esconde, na fronteira da Umbria com a Toscana. A neve fechou as estradas e ela não pôde sair de casa. Enquanto eu passava minha roupinha, via uns floquinhos solitários voando pra lá e pra cá, mas poucos, e do tipo que dura pouco, que vira água quando bate no vidro. A previsão pra hoje era de neve inclusive a bassa quota, ou seja, em baixas altitudes, e, de fato, Bettona, que fica exatamente do lado oposto à minha casa, lá longe, estava toda coberta de neve, mesmo não ficando tão no alto assim. Assis estaria mais linda se não fosse a nuvem de tempestade de neve que cobria o topo do Subasio. Mas os telhados estavam todos branquinhos. Aqui embaixo, no vale, dificilmente a neve cai pra valer. A última vez foi em 1981, e foi OOOOOO acontecimento. Há fotos do evento espalhadas por todo o prédio da prefeitura.

Desde que cheguei aqui pela primeira vez, já encarei frente fria vinda da Finlândia, da Sibéria e sei lá mais de onde. A frente fria que está atravancando a vida dos Botenses essa semana vem da Groenlândia. Rapadura é pouca mas né mole não.