o maior defeito italiano

(Não, não é falar gritando, que pra mim é gravíssimo).

Eu falei outro dia que o governo tá caindo matando em cima dos sonegadores de impostos. Aí resolveram dar uma blitz em Cortina d’Ampezzo, cidade de montanha famosa pelos VIPs e ricaços que frequentam a sua estação de esqui. Como sempre, havia muitos políticos e artistas. E choveram multas. Um cliente do Mirco estava lá e disse que viu oficiais da Guardia di Finanza de butuca na porta de joalherias e lojas de casacos de pele; o freguês que saía da loja com sacola na mão era parado imediatamente, tinha que mostrar os documentos, que depois serão usados pra cruzar os dados do valor da compra e da renda declarada pra ver se são compatíveis, e a nota fiscal.

Um dos personagens políticos mais odiosos da Itália, a plastificadérrima Santanché, reclamou, junto com muitos outros políticos, dizendo que essa blitz foi muito discriminatória, feita em Cortina “só porque é uma cidade rica” (maddai?), que foi uma coisa arbitrária e coisa e tal (provavelmente deve ter falado que foi coisa de comunista também, não sei), que prejudica o turismo da cidade e consequentemente a economia local. Ao que o responsável pela operação respondeu: imagina, nós fizemos foi muito bem à economia local, visto que o faturamento registrado foi 300% maior do que no mesmo dia no ano passado… Hohoho! (Claro, todo mundo que nunca bate nota fiscal começou a bater com medo de ser pego pela Finanza). Morri de rir.

Mas esse é um bom exemplo do que eu considero o maior defeito italiano: a mania de ficar puto da vida quando está errado. Cara, que ódio que isso me dá, vocês não têm noção! É o que acontece no trânsito, toda hora: o cara encosta o carro todo torto na baia do ônibus pra mulher descer pra comprar jornal na banca, o ônibus quer encostar no ponto e não pode, buzina, e o desgraçado no volante ainda fica puto! Bota a mãozinha pra fora, Italian-style, e pergunta “ma che cazzo vuoi?”. Como assimmmmmm? Tá errado, bota o rabo entre as pernas e cala a boca!

Uma vez, na nossa pizzaria preferida, entrou um fulano todo esbaforido avisando que tinha um guarda multando os carros estacionados na calçada. Veja bem, estamos falando de uma cidade com 15.000 habitantes, com um único sinal de trânsito, engarrafamento zero, nenhum problema pra estacionar o carro, mas TODO MUNDO prefere estacionar em lugar proibido só pra não ter que caminhar duzentos metros se parar um pouco mais longe. Então o guarda tava passando dando canetada na galera. Saiu todo mundo correndo da pizzaria pra tirar o carro da calçada – cena mais ridícula é difícil de imaginar – enquanto nós, que tínhamos parado meio longe mas logicamente em vaga permitida, ficamos lá rindo e comendo nossas pizzas quentinhas. Gradualmente o povo começou a voltar pras suas pizzas já frias, e de repente entra um muito puto da vida, as jugulares pulando, os amigos segurando, querendo brigar com o guarda porque ele não apitou antes de multar? Hein? Peraí, então o guarda tem que avisar antes de multar pra você ter tempo de tirar o carro? E você que estava com o carro EM CIMA DA PORRA DA CALçADA se acha no direito de ficar puto com o que quer que seja? Caraca, que raiva. Se eu tivesse um cacetete tinha ido lá dar umas porradas no cara. Vai ser incivil assim na China, putz!

Até hoje só levei uma multa, por estacionamento. O negócio é o seguinte: aqui as vagas sinalizadas com faixas azuis são a pagamento, e as brancas são gratuitas. Um dia estacionei na ruazinha em frente ao supermercado, numa vaga onde sempre parávamos quando íamos ao cinema em Bastia (hoje em dia moramos mais perto e vamos de bicicleta). Como depois das oito da noite não se paga pra estacionar nem nas vagas azuis, a gente parava o carro e ia embora, sem nem olhar pro parquímetro nem pra cor das faixas no chão, então eu simplesmente nunca tinha percebido que a tal da vaga era azul. No dia em que fui ao supermercado parei o carro e fui-me embora sem nem olhar também, exatamente como sempre fazíamos à noite. Quando voltei, exatamente 13 minutos depois, tava lá a multa no meu pára-brisas. Olhei imediatamente pras faixas azuis no chão, pensei “anta”, e dali fui direto aos correios pagar. Tenho o direito de ficar puta? Não, né, visto que eu estava errada, embora em boa fé; foi falta de atenção mesmo. Se fosse outra pessoa teria contestado na Justiça, usando essa ou aquela justificativa. Conheço duas pessoas que contestaram multa porque na foto do pardal não dava pra ver quem tava dirigindo, embora eles soubessem exatamente que eram eles mesmos no volante. É muito mau caratismo ou sou eu que sou moralista?

a crise

O negócio por aqui anda feio. O Mirco anda trabalhando pra caramba, inclusive aos domingos; volta e meia cozinho pra turma inteira e levo o panelão de macarrão pra oficina porque eles fazem uma pausa de almoço menor pra dar conta do selviço (um saco cozinhar pra essa gente, essas merdas de muçulmanos não comem porco, o que torna a minha vida muito difícil já que um presuntinho ou um bacon dá um super tcham em qualquer comida, e ainda por cima tem um desgraçado que é alérgico a ATUM!!!). Mas um dos clientes dele hoje não abriu porque não tinham nada pra fazer. Quer dizer, o bicho vai acabar pegando pra cima da gente também, acho.

O problema é que o pacote de medidas que o novo governo resolveu implantar não resolve nada. Vejam só: aumentaram (e muito) os combustíveis, o que resulta em aumentos de preços de TODOS os produtos, já que tudo na Itália viaja de caminhão, ao contrário dos países mais civilizados da Europa, que dão preferência ao transporte ferroviário. Vão aumentar o IVA (o equivalente do VAT) de novo; já passou de 20 a 21% e há um novo aumento previsto pro ano que vem. Voltaram a instituir o IPTU pra primeira casa, que aquela anta do Berlusconi tinha tirado como medida populista, falindo um monte de prefeituras. Vão abolir as províncias, cortando custos burocráticos – mas todos esses funcionários públicos vão ter que ser redistribuídos de alguma forma, de modo que não sei até onde isso resolve o problema. Os aposentados agora serão obrigados a abrir conta no banco pra receber a pensão, o que gerou uma um bafafá enorme – é sabido que velho gosta é de contar os dinheiros e guardar embaixo do colchão; a maioria é semi-analfabeta e não entende o conceito de conta corrente, de banco, de juros, de nada. Estão todos furibundos. Vão cair matando em cima de quem trabalha “in nero”, ou seja, por baixo dos panos, sem nota fiscal – quer dizer, praticamente todo mundo, até porque a carga fiscal italiana é uma das mais altas do mundo e se você não der uma pulada de cerca aqui e ali não ganha o suficiente nem pra comer. Só pra ter uma ideia, eu faturo (faturar no sentido de emitir faturas, não de lucrar) menos de 10.000 euros por ano, porque só trabalho de manhã e mesmo assim olhe lá (tem que descontar o tempo pra levar a Carol na escola, arrumar a casa, fazer almoço, pegar a Carol na escola, fazer ginástica, fazer compras etc – aliás eu não sei como consigo trabalhar at all), e mesmo assim pago 50% de imposto de renda! Fora o INPS, que também pago do meu bolso porque sou profissional liberal. Legal, né? Só que eu não posso sonegar nem querendo, porque tudo o que eu faço de trabalho é por e-mail, ou seja, totalmente rastreável. Cornuta e bastonata, como se diz aqui.

Mandar a Igreja Católica pagar IPTU nem pensar, né. Cortar os salários dos professores de religião (que, como eu já expliquei, não precisam fazer concurso público, pois são escolhidos pelos bispos), pagos pelo Estado, não, né. Cortar o salário dos parlamentares não, né. Aliás, cortar o número de parlamentares e senadores e tudo o mais, já que a máquina política italiana tem mais funcionários do que o governo dos EUA! Depois reclamam quando a Alemanha, que é quem dá as cartas na União Europeia desde sempre, fica dando bronquinha.

O outro chefão europeu, a França, também não anda lá muito bem das pernas. A Espanha e a Grécia, os primeiros a ir pro brejo, no brejo permanecem. De Portugal ninguém nem fala, como sempre, pois tem a relevância do Espírito Santo (o estado, não o fantasma), ou seja, zero. Então agora tá todo mundo meio que torcendo pra Itália sair do buraco, porque é a única grande economia que ainda está mais ou menos de pé, embora cambaleando, e segundo os economistas quando a Itália falir, o euro acaba. O engraçado é que a Itália não produz praticamente nada; a sua única grande indústria é a Fiat, que recebe ajuda econômica do governo há anos pra não falir. Li em algum lugar que 97% – eu disse 97% – das empresas italianas são o que eles chamam de “conduzione familiare”, ou seja, administradas pelos membros da mesma família, e empregam menos de 12 pessoas (os números não são exatos porque não me lembro, mas dão uma boa ideia da situação). A Bota vive de turismo, que caiu bastante, e da indústria do luxo, que como todo mundo sabe não sofre grandes flutuações mesmo durante períodos de crise mas também não é um bom indicador da potência industrial de um país. Nesse universo de microempresas, as medidas econômicas do pacote lançado essa semana não vão ser exatamente uma bênção. Muita gente que ganha “in nero” não vai querer gastar o dinheiro com medo de ser descoberto – uma outra medida do governo foi proibir transações em cash acima de 1000 euros, forçando o uso de cheques, cartões de crédito e de débito, que são rastreáveis. Não podendo gastar pra não serem descobertos, o consumo vai cair. E com todo mundo guardando dinheiro em casa, os furtos em apartamentos vão aumentar.

É guerra, rapaziada.

UDPATE: Acabei de ficar sabendo da nova punhalada do governo: qualquer conta corrente ou poupança com mais de 5.000 euros parados vai ter que pagar 34 euros por ano se pertencer a pessoa física, 100 euros se pertencer a pessoa jurídica. Daqui a pouco vão começar a exumar as ideias da Zélia e confiscar a poupança tout court…

o interior do zaire também é tupiniquim

Eu sempre reclamo que isso aqui é o interior do Zaire, e qualquer estrangeiro decente que mora aqui sabe que estou coberta de razão. Mas o Brasil tem horas que também testa a paciência da gente, vou te contar…

A irmã da Fabiola tá vindo pra cá pro Natal e resolvemos comprar cousas tupiniquins pros nossos respectivos pimpolhos e mandar entregar na casa dela, pra ela trazer. E daí começam as nossas duas sagas paralelas.

A minha saga

Fui lá no site, botei as minhas coisas no meu carrinho e fui fazer o check-out. Entrei com meu username e minha senha de sempre e quando vi a parada já tinha sido concluída, com uma mensagem de que o pedido estava feito. Fui checar o e-mail automático que me mandaram e vi que simplesmente diziam que estavam esperando o OK do banco. Só que vão ficar esperando até o próximo Big Bang, porque aquela conta não existe mais. Perdi HORAS tentando achar um jeito de alterar os meus dados bancários, mas nada. Então mandei tudo à merda; fiquei com preguiça de escrever pra eles reclamando e resolvi juntar as minhas compras ao pedido que a Fabiola estava fazendo pelo site da Livraria Cultura. Só que…

A saga da Fabiola

A Fabiola também tinha um cadastro antigo no site da Cultura. O cadastro deles tem um e-mail antigo dela, que não existe mais. Ela tentou fechar a conta, mas eles pediram a senha ligada ao tal e-mail; ela respondeu que não sabia mais a senha. Pra eles não mandarem a confirmação do pedido pro e-mail defunto, ela preencheu o formulário pra quem quer cadastrar um novo e-mail, mas não chegou nenhuma mensagem ao endereço novo. Lá vai a Fabiola escrever pra eles, avisando que a coisa toda é urgente porque a irmã dela tá vindo pra cá daqui a pouco, e eles escrevem de volta avisando que o pedido dela já está à disposição dela no Fashion Mall. Shopping do qual ela logicamente nunca ouviu falar, sendo de Americana e não tendo intimidade com o Rio (defeito grave, sabe, mas tudo beeimmmm). Uma googlada rápida e ela descobre que o shopping é o São Conrado Fashion Mall, no Rio. E ainda pedem pra ela preencher uma autorização de débito em conta corrente e mandar por fax. É mole ou quer mais?

Que beleza viver na era digital…

a friagem vem aí, lalalalalalala

Uma amiga comentou outro dia que estava com uma dor de garganta power e que não sabia se esperava passar ou se ia ao médico. Ela tinha tido febre no dia anterior e estava com dificuldade pra engolir, então aconselhei ir ao médico, que provavelmente ia dar um antibiótico. Dito e feito. Só que além do antibiótico o médico disse pra ela não pegar frio por 3 ou 4 dias.

Eu juro que gostaria de entender o que é que europeus em geral têm contra “a friagem” (em italiano eles chamam de “frescata”). Será que é tão difícil de entender que o frio fosse realmente danoso ao ser humano não haveria ninguém morando de Nápolis pra cima? Eu sei que as mucosas ficam confusas com as mudanças bruscas de temperatura quando entramos e saímos entre locais frios e quentes nas estações extremas, mas nós não temos só as mucosas das vias aéreas como sistema de defesa. Se você estiver bem de saúde, não vai ser uma mucosa bolada que vai te deixar à mercê dos germes. Já tentei explicar ene vezes que o único problema que o frio causa (lógico que estamos falando de frio normal, não de ficar pelado na rua em Moscou em dezembro depois de uma semana de greve de fome) é o desconforto. Que pode sim rolar uma dor local por vasoconstrição – quando eu saio no frio de cabelo molhado sinto aquela dor tóooooin quando boto o pé na rua, mas depois passa quando entro no carro ou em outro lugar fechado. Sim, o nariz, as orelhas e os dedos dóem quando está frio demais, porque os vasos sanguíneos se contraem pra não perder calor, e essa contração rápida dói, normal. Mas veja bem, não está acontecendo nada de bizarro, meus dedos não estão necrosando, não vão cair, não vou ficar aleijada pra sempre – eles simplesmente estão doendo porque os vasos estão fechadinhos da silva. Quando o calor voltar eles vão dilatar de novo – e se a dilatação for rápida vai doer pra cacete, mas também passa – e pronto, voltamos à estaca zero. Mas não adianta explicar, porque “sempre foi assim” ou “foi assim que me ensinaram”, lemas idiotas que deveriam estar costurados na bandeira italiana de tão enraizados que estão na cabeça dessa gente. A minha mãe acha que é coisa do interiorrrrr, mas não é: eu já cansei de ouvir médico na televisão falando sobre fazer exercício ao ar livre e avisando muito seriamente pra não ficar sem camisa. Sem mais, meritíssimo.

Mas o pior pra mim é a mania da “corrente de ar”. QUALQUER COISA que neguinho sente de estranho por aqui, bota-se a culpa na corrente de ar. Inclusive – e prestem atenção que isso é muito grave – quando se trata de ar quente. Uma vez estávamos no carro andando em Santa Maria, em pleno verão, tipo 3 da tarde, 35 graus à sombra, e passamos por um fulano correndo só de short entre os campos. Eu imediatamente pensei com meus botões, “filho, nunca ouviu falar de insolação não?”, mas o comentário do nosso amigo interrompeu meu raciocínio: “Cara maluco, vai pegar uma pneumonia correndo sem camisa!”.

PÁRA TUDO.

Cacetes estrelados, vento não causa pneumonia. Pneumonia é causada por vírus, bactéria, fungo; pode ser química, em caso de reação a vômito broncoaspirado, por exemplo; pode ser um monte de coisas. Mas “vento” não é uma causa de pneumonia. Vento resseca a mucosa, aliás a queixa maior de quem não gosta de ar condicionado, mas não causa danos permanentes à garganta de ninguém. Vento resseca a pele, o que pra mim, que já tenho pele seca, é o horror, o horror. No meu caso em particular, vento irrita PRA CACETE, o que deve ter alguma repercussão psicossomática não indiferente. Mas eu já ouvi gente citando o vento como causa de *tamboresssssss* dor de dente, indigestão, dor nos rins (já falei que rim não tem receptor nervoso pra dor, mas não adianta), dor nas costas, dor no pescoço (a nacionalmente famosa “cervicale”), e tudo o mais que vocês possam imaginar. Um dia em que a mãe de uma amiga me avisou pra não ir lá pra fora depois de almoçar pra não dar indigestão eu quase engasguei de tanto rir e foi difícil explicar que eu não ia comer neve (que nem tinha porque aqui não neva) nem sair correndo pelada pela rua. Mas é como falar com as paredes.

Menos religião e mais ciência nas escolas, por favor.
Grata,
Leticia

a escola da carol

Quando a Carolina nasceu, uma das primeiras coisas que a gente pensou foi: caraca, onde é que essa garota vai estudar? Porque sim, há várias creches por aqui, públicas e particulares, mas todas enquadradas no esquema educacional italiano, que eu odeio – basicamente preparam a criança pra vida de decoreba que terão ao longo dos anos de escola, ao final dos quais serão os piores da Europa em praticamente todas as matérias. Pra não falar das duas horas – DUAS, 1 + 1 – horas de religião por semana já na chamada “scuola dell’infanzia”, o nome oficial da preschool aqui. Felizmente nesse meio tempo abriram a escola dela em Santa Maria, a 7 minutos aqui de casa e within a short walking distance da minha sogra.

A escola tem um nome ridiculamente pomposo porque é administrada por uma fundação esquisita que ninguém sabe direito o que faz, fundada por um napolitano (hm…) egocêntrico aparentemente sem nenhuma formação científica ou humanística ou o que quer que seja. Pelo que ouvi falar o negócio é uma espécie de culto da personalidade, sabe, e é seguido pelos seus “fãs” com um certo grau de fanatismo. Mas como isso não tem a menor influência sobre a escola, que segue linhas pedagógicas bem precisas senão não pode ser chamada de montessoriana, a coisa não me interessa.

Descobrimos a existência da escola quando vimos um panfleto no consultório da pediatra da Carol. O panfleto dava a data de um open day pros pais conhecerem a escola, que já tinha um ano de funcionamento. No dia marcado fui lá com a Carol e conversei muito com a diretora (que não é mais a mesma, infelizmente) enquanto a Carol ficou sozinha, pasmem, com uma das professoras, brincando com os brinquedos de madeira em uma das salas de aula. Ela normalmente è muito avessa a estranhos, mas naquele dia eu saí da sala e ela nem me deu tchau, ficou lá brincando com aquela garota novinha que ela nunca tinha visto na vida. Achei um bom sinal. Fiz a pré-inscrição naquele dia mesmo, e voltei em janeiro pra pagar a matrícula e formalizar a inscrição.

A história da Maria Montessori, criadora do método do mesmo nome, é muito interessante (vão procurar porque vale a pena). Por aqui fizeram há alguns anos uma minissérie sobre a vida dela, com a ótima Cortellesi no papel principal, mas eu nunca consegui assistir inteira. A verdade é que qualquer escolinha que não tivesse um crucifixo na parede nem aulas de religião pra gente já seria uma maravilha, pois estamos ficando cada vez menos pacientes com religiões em geral conforme passam os anos, e ter encontrado um lugar que não só não tem nenhuma ligação com esses desgraçados da igreja católica mas também segue um método que eu aprecio muito foi um presente dos céus (hohoho). Porque um dos lemas da Montessori é que as crianças têm que aprender a aprender. Aprender a gostar de aprender. E aprender fazendo.

Não há brinquedos de plástico nas salas, só de madeira, todos desenvolvidos pela própria Maria segundo a lógica pedagógica dela. Não há portas fechadas – nada de armários, só prateleiras abertas às quais as crianças têm acesso livre, pois tudo está colocado na altura delas e elas têm total liberdade de mexer e futucar no que quiserem. As turmas não são divididas por idade, mas sim pela capacidade das crianças (isso mais tarde; por enquanto a scuola dell’infanzia tem uma só turma com crianças de 3 a 5 anos todas juntas, obviamente com capacidades muito diferentes); segundo a Maria crianças menores têm muito a aprender com as maiores, e vice-versa. As professoras são mais observadoras do que outra coisa, deixando que as crianças aprendam sozinhas como funcionam os brinquedos e só entrando em ação quando a criança realmente não consegue fazer o que quer e começa a ficar frustrada. Mesmo assim, as intervenções têm como objetivo ajudar a criança a resolver o problema sozinha e lidar com a própria frustração, ensinando-a a insistir até conseguir e a ter orgulho de tentar fazer as coisas sozinha.

A gente aqui em casa sempre tenta estimular a Carol a ser independente, e de fato ela fica pau da vida se você tentar ajudar quando ela tá lá lutando pra fechar o casaco ou enfiar o pé no sapato ou guardar os DVDs na estante ou sei lá o quê. Desse ponto de vista ela tem sorte por eu não ter horário fixo de trabalho, porque às vezes ela leva uns dez minutos até conseguir fechar o zíper do casaco pra gente finalmente sair de casa… Mas enfim, essa independência é muito estimulada na escolinha. Todos os dias duas crianças são escolhidas pra servir o almoço. Cada criança tem seus próprios talheres, seu copo e seu guardanapo de pano guardados em uma espécie de envelope de algodão que aqui se encontra até no supermercado, e seu joguinho americano (facilita horrores em termos logísticos porque evita brigas, já que cada um realmente tem o seu e pronto). Cada uma bota a própria mesa, por assim dizer, e depois os dois “garçons” do dia servem a comida, que vem em pratos de plástico selados com filme plástico pra não derramar. Todas comem sozinhas e depois cada uma guarda suas próprias coisinhas no seu próprio saco de pano, que por sua vez é guardado na sua mochila, na qual vão pra casa pra serem lavadas pelos pais. É a coisa mais fofa: todos saindo da sala do almoço em fila, jogando os pratos sujos no saco de lixo fora da porta e carregando cada um seu saco com os seus pertences e o joguinho americano, que são guardados em lugares específicos em outra sala.

Cada criança também tem sua própria toalha de rosto, com o nome bordado ou etiquetado; cada toalha fica pendurada num ganchinho na entrada do banheiro, e acima de cada ganchinho tem a foto do dono da toalha, pra ninguém usar a toalha dos outros. Todas vão ao banheiro sozinhas (a Carol adora o vaso sanitário “pinininho”, tamanho megasmall) e só chamam a Sonia, a assistente (leia-se limpadora de bundas infantis), depois que já fizeram o cocô e precisam de ajuda pra se limpar. No vestiário, onde ficam as mochilas, cada criança tem outro ganchinho com o seu nome, onde fica pendurada uma bolsa com duas mudas de roupa. Cada uma tem um cabide com o próprio nome escrito, onde pendura o casaco quando chega e o jalequinho quando sai.

(O jalequinho, que eles chamam de “grembiule” – avental, é um clássico da escola italiana, e acredito que também seja usado em outros países europeus, não sei. Quadriculado pequenininho, rosa pras meninas (…) e azul pros meninos, com ou sem algum personagem bordado na frente, pode ser comprado em qualquer loja de roupa de criança ou supermercado. O da Carol tem a Minnie e eu comprei no supermercado mesmo. Ela queria o azul, mas só tinha bicho feio bordado, esses monstros do Ben Ten e outros horrores que ela nem conhece e detestou, então fomos de rosa mesmo. Apesar de cafona, porque tem uma golinha ridícula praticamente vitoriana, é uma ótima ideia, pois quem fica sujo é o jaleco e não a roupa.)

Outra coisa legal: ninguém entra de sapato nas salas de aula. Cada criança tem a sua própria caixa de sapato no vestiário, com um par de sapatinhos pra andar dentro de casa (hediondos) ou Crocs (que felizmente quase todas as crianças usam atualmente; são horrorosos mas pelo menos divertidos e alegres, enquanto que os tais sapatinhos têm sempre uma cara de pantufa de velho, eca). A criança chega, tira os sapatos, calça os Crocs, bota os sapatos na caixa, guarda a caixa no lugar, pendura o casaco, veste o jaleco e vai pra sala de aula. Achei sensacional, porque vamos combinar que poucas coisas no mundo são mais asquerosas do que sapato, néam. Aqui em casa não se entra de sapato; desde pequenininha ela tira os sapatos assim que entra em casa, bota no armário e fecha a porta, de modo que nada disso foi novidade pra ela.

No caso dessa escola dela, o fato de ter inglês também fez a diferença, porque nessa idade as escolas não são obrigadas a oferecer línguas estrangeiras (isso explica muita coisa). A escola diz ser bilingue, mas o termo não é correto porque pra mim escola bilingue é aquela na qual uma boa parte das aulas ou atividades é feita em outra língua, o que não é o caso: todos os dias as crianças têm uma hora de inglês, metade da turma de cada vez, com uma professora inglesa muito legal, e isso já é muito mais do que a maioria das outras creches, que não tem inglês nenhum, mas bilingue bilingue mesmo não é. De qualquer maneira, a Carol já começa a dizer “what’s this?”, “sit down”, “be careful”, “excuse me”, e a identificar e perguntar o significado de várias palavras nos desenhos que assistimos em casa (porque aqui é terminantemente proibido ver TV em italiano, só em português ou inglês). Por exemplo: um dia ela falou “sei lá quem é stupido” e eu disse que não se diz “stupido”, que é uma coisa feia, e ela disse “mas a vovó fala”, e lá fui eu explicar que na Itália as pessoas praticamente se enchem de porrada e se ofendem das piores maneiras durante conversas normais, plácidas, pacatas, quotidianas, e que aqui isso é normal mas no resto do mundo não, de modo que não se usa “stupido” e pronto. Poucos dias depois estávamos vendo A Bug’s Life e o Hopper diz “Do I look stupid to you?” ou “Do you think I’m stupid”, não lembro, e ela, horrorizada: o Hopper falou *sussurrando* stupido! Coisa feia! Quando eu leio The Very Hungry Caterpillar pra ela, ela lembra que a palavra “moon” também aparece no desenho do Jack (Nightmare Before Christmas), quando uma das bruxas diz que o Jack é tão maravilhoso que chega a ofuscar a lua ou coisa parecida. Quer dizer, estamos indo bem. Gostaria de mais horas de inglês por dia, e possivelmente chinês, mas por enquanto tá bom assim.

Mas o que me ganhou mesmo foi o questionário eLorme que tive que responder quando fiz a matrícula. Além das perguntas mais tradicionais (e que mesmo assim nenhuma outra escola aqui da região perguntou pra ninguém; nenhum amigo nosso respondeu a questionário nenhum quando botou o filho na escola), tipo se a criança mamou no peito, se já foi à creche antes, com quem ficava em casa se não foi à creche, se tem alergias alimentares etc, tinha muitas outras perguntas interessantes e inesperadas. Quantas horas por dia a criança passa em frente à televisão? A criança entende a importância de botar as coisas no lugar? A criança tem liberdade pra mexericar em tudo em casa? A criança gosta de experimentar comidas novas, diferentes? O que ela gosta de fazer, de brincar? Há livros em casa pra ela brincar?

E a lista de materiais e recomendações que a escola manda antes das aulas começarem? Maravilhosa. Desaconselham firmemente o uso de roupas com botões, cadarços, babados ou qualquer outra coisa que possa ficar presa ou incomodar a criança, assim como tecidos desconfortáveis. Praticamente imploram que os pais mandem a criança pra escola de moletom em vez de jeans ou denim, tecidos duros que alguém decidiu que eram confortáveis e essa propaganda enganosa foi sendo perpetuada até hoje (DETESTO jeans, não consigo imaginar roupa mais desconfortável do que um par de calças jeans, aquele tecido duro – porque é duro mesmo quando o jeans é amaciado – e aquelas costuras grossas e rígidas, cruzes). A Carol tem uma invejável coleção de leggings, comprados a 5 dólares no outlet da Carter’s em Boston, montes de blusinhas de manga comprida simplérrimas da Zara kids, blusas de moletom compradas no supermercado, todas roupas ótimas pra “bater” e que não vou ficar chateada se manchar de molho de tomate ou pilot. E pensar que o Menino Que Não Pode Suar vai pra escola de camisa social…

a bota foi pro brejo

Deixa eu tentar explicar a atual situação política aqui na Itália.

O Berlusconi está no poder há 15 anos, de maneira intermitente mas sempre presente. Cheio da grana, dono de metade da imprensa italiana, de universidades, de lojas de departamentos, de time de futebol, de editoras, de bancos, é lógico que ele não só moldou as leis do país de acordo com os seus interesses, mas moldou também as mentes do povão, porque a televisão mostra o que ele quer, as editoras publicam o que ele quer, as universidades ensinam o que ele quer, os jornais dizem o que ele quer. De modo que criou-se assim uma geração inteira de idiotas que realmente acham o cara o máximo, superengraçado, garanhão que come todas, pelo qual as moças novinhas, puras e inocentes se apaixonam pelo simples fato dele ser uma pessoa fascinante. É essa a resposta à pergunta que muitos jornais estrangeiros vinham se fazendo nesses anos todos: por que diabos a Itália atura esse traste?

A esquerda italiana não é mais a mesma, há muito tempo. Os políticos de esquerda são confusos, em cima do muro, e tão escravinhos da Igreja quanto a direita. Pra mim a única que merece respeito é a Emma Bonino, que sempre tem ideias claras e ponderadas, e é coerente consigo mesma. Também gosto do Tonino, mas ele tende a criar caso de uma maneira bobinha, quase infantil, o que acaba não resolvendo as coisas e transformando-o quase em um personagem de folclore. E então acaba-se não tendo pra onde fugir. Eu não tenho direito a voto, mas se tivesse sinceramente não saberia em quem votar.

Esse Mario Monti que assumiu no lugar do Berlusconi é um ilustre desconhecido aqui na Itália. Olha, eu moro aqui há quase dez anos, acompanho a política de perto porque acho tão surreal que chega a ser interessante, os políticos toda hora aparecem na televisão, em entrevistas, em programas de debate, em programas de auditório; as caras costumam ser sempre as mesmas, mas do Monti eu nunca tinha ouvido falar. Ninguém que eu conheço tinha ouvido falar dele antes da sua nomeação como senador vitalício (25.000 euros por mês de salário) e depois como premier. E olha que o cara tem um nome fácil de lembrar: nome e sobrenome com aliteração (coisa que eu detesto e portanto fica me irritando por horas a fio), parecido com Marisa Monte, e, principalmente, porque a locução adjetiva “mari e monti” (mares e montes) se usa pra descrever pratos que combinam frutos do mar e cogumelos – tipo risotto mari e monti, tagliatelle mari e monti. De modo que se digo que nunca tinha ouvido falar dele antes é porque realmente nunca tinha sequer ouvido o nome, ou me lembraria. O cara é um frequentador dos altos escalões no mundo da economia e é muito respeitado lá fora, o que já é uma grande coisa, principalmente pra quem vem do trauma que é ter aquela COISA como premier, sacaneado no mundo inteiro. Mas também é óbvio que os interesses dele são os mesmos dos bancos e das bolsas de valores e do mundo das finanças, o que pode ser bom a curto prazo, pois o objetivo imediato é tirar a bunda do país da reta pra evitar que acabemos como a coitada da Grécia. A longo prazo a ideia é péssima, mas como espera-se que esse governo seja apenas provisório, há esperanças.

O mandato do psiconano (psico-anão, como o Cavaliere é gentilmente conhecido nos fóruns na rede) deveria acabar em 2013; o governo Monti é, então, uma espécie de tapa-buraco, de remendo, de band-aid de emergência. E trata-se de um governo “técnico”, como eles dizem aqui: formado não por políticos, mas por professores, economistas, profissionais apartidários (pelo menos em teoria) cujo objetivo é tirar o país da merda e não fazer política. Só que nem tudo são flores…

Quem estava esperando uma política ligeiramente mais laica, ligeiramente menos submissa à Igreja, literalmente se fodeu. Porque os novos ministros incluem o presidente de um movimento eclesiástico como Ministro da Cooperação, o reitor da Universidade Católica de Roma como Ministro dos Bens Culturais, um professor da mesma universidade como Ministro das Relações com o Parlamento, o líder de outro movimento eclesiástico como Ministro da Saúde (tem como dar certo isso?), entre outros. O Cardeal Bagnasco, presidente da Conferência Episcopal Italiana e um grandíssimo, IMENSO FILHO DA PUTA, arrogante, mal educado, cara-de-pau, mentiroso, falso, desgraçado, já mandou recadinho pro novo premier dizendo-se satisfeito com as escolhas. Por que diabos um filho da puta de um cardeal, que aliás já deu declarações na televisão dizendo que a Igreja não faz política, imagina, se acha no direito de aprovar essa ou aquela equipe de ministros is beyond me. Esse país anda me cansando uma quantidade.

Veja se não tenho motivo pra me irritar: a última gracinha do governo do psiconano, coisa assim, de rabeira, pra sacanear mesmo, foi dificultar mais ainda a fecundação heteróloga na Itália. Neguinho que precisa fazer fecundação artificial já tende a ir pro exterior porque aqui as dificuldades são muitas, mas agora ficou pior ainda: mesmo quem tem doenças genéticas graves como fibrose cística não pode mais fazer fecundação heteróloga. Ou seja, ou você usa ou seu próprio óvulo/espermatozóide e enfrenta o grande risco de passar pro seu filho a sua doença, ou fica sem filho e azar o seu. Legal, né. Talk about livre arbítrio. Livre arbítrio my ass. Isso porque, apesar do aborto ser permitido legalmente no país, aqui rola uma coisa chamada “objeção de consciência”. Significa simplesmente isso: um médico pode se recusar a fazer isso ou aquilo se o tal procedimento ou conduta for contra os seus preceitos religiosos, ou a sua consciência. Cuma? Isso mesmo que você ouviu. Há hospitais onde é praticamente impossível abortar porque TODOS os ginecologistas se declaram “obiettori di coscienza” e se recusam a fazer o procedimento. Ora, façam-me o favor! O aborto é legal há não sei quantos anos, se você se formou quando a lei já estava em vigor, por que não foi fazer oftalmo em vez de uma especialidade da qual o aborto faz parte como procedimento médico? Não preciso nem comentar que muitos desses médicos que se declaram obiettori di coscienza e se recusam a fazer o aborto no hospital público oferecem à paciente a possibilidade de fazê-lo no próprio consultório particular, a cifras módicas. Forca pra todos eles, forca, flagelação em público, cicuta, esses filhos da puta têm mais é que morrer. Se tem coisa que me dá ganas de estrangular é a hipocrisia.

Continuando no assunto Vaticália, fiquem sabendo (porque quase ninguém sabe) que atualmente a carga horária de IRC (“insegnamento di religione cattolica” – vejam bem, não “religião”, mas “ensino da religião CATÓLICA”) é de duas horas por semana já a partir DA CRECHEEEEEEE! Teocracia? Nããããããão, impressão sua… A Carol só não faz religião porque estuda em escola particular e totalmente laica. Teoricamente essa hora de religião deveria ser opcional, só pros alunos cujos pais fazem a requisição formal à escola, mas na prática é o contrário: se você não quer que o seu filho faça religião tem que fazer a requisição de “hora alternativa” (alternativa à hora de ensino de religião católica), só que as escolas não têm dinheiro, pessoal ou estrutura pra fazer a tal hora alternativa e as crianças que não fazem religião normalmente ficam sozinhos numa sala de aula sem fazer nada, ou brincando no pátio. Gostaram? Agora vamos jogar sal na ferida: quem escolhe os professores de religião é o bispo de cada bispado, mas os professores são pagos pelo Estado! Mais: eles têm uma imensa facilidade em fazer carreira, escolher o lugar pra onde querem se transferir, os horários nos quais preferem trabalhar, e ainda por cima passam da situação de contrato precário direto pra professor assistente, com posição inabalável de funcionário público, em um bater de olhos, enquanto que há professores das outras matérias que passam a vida inteira como precários, sem nunca saber se vão acordar no dia seguinte ainda com emprego.

Bom, a esperança é a última que morre e coisa e tal, portanto vamos esperar pra ver que bicho que vai dar esse novo governo.

P.S.: Viram que abri a caixa de comentários? (Valeu, Claudinha!) Por favor comportem-se. E o primeiro que escrever “à Roma” vai levar uma trauletada.

ah, itália…

Eu venho dizendo há anos que a Itália é o país mais divertido do mundo. É tão surreal que se não existisse precisava inventá-la.

Quem já viu televisão aqui sabe do que eu estou falando. Antes do telejornal da manhã todos os canais fazem o que eles chamam de “rassegna stampa”, que resume-se a LER em voz alta, às vezes sublinhando as frases mais importantes com marca-texto, as manchetes dos principais jornais do país. Não estou brincando. O cara fica lá sentado de frente pra câmera atrás de uma escrivaninha cheia de primeiras páginas de jornais, e vai lendo em voz alta e sublinhando. Não é uma coisa?

E as roupas dos repórteres? Quando eu estudei em Chiavari com a Syrléa a gente dava gargalhadas com o terno de veludo cotelê amarelo-mostarda e a barba por fazer do apresentador do TG5, que por sinal continua lá até hoje e continua volta e meia aparecendo com barba de dois dias. As apresentadoras mulheres muitas vezes usam roupas abomináveis, estampas berrantes, decotões, brinco gigante em uma orelha só, coisas que deveriam ser proibidas por lei tipo paletozinho vermelho-Paloma-Picasso com botões dourados e om-brei-ras. Pra não falar dos cabelos. Já vi cabelo amarelo com a raiz escura, franja caindo nos olhos é um must, cabelo chapinhado escorrido cobrindo as laterais do rosto é supercomum. Maior profissionalidade, vou te contar.

o bicho tá peganuuuuu

Rapaz, a coisa aqui na Bota anda emocionante que é uma beleza.

Vocês sabem que o Berlusca anda tentando de todos os modos passar uma lei que livre o seu próprio rabo, já que está envolvido, como sempre, em trocentos processos judiciários. O Lodo Alfano, que dava imunidade aos quatro mais poderosos do governo, estranhamente não foi aprovado. Agora ele anda doidinho pra aprovar uma outra lei que oficialmente serve pra desatolar o sistema judiciário italiano, que em termos de processos atrasados é pior do que o de Uganda (segundo pesquisas publicadas nos jornais). Não oficialmente, como todo mundo sabe, serve pra reduzir o tempo necessário pra que um processo prescreva. E vejam só que coisa curiosa, se for aprovada os processos nos quais ele é acusado, direta ou indiretamente, vão entrar em prescrição, por pouco. Engraçado, né.

Aí isso dá origem a várias coisas. Uma vai ser o No-B Day (no Berlusconi Day), protesto em Roma que não sei quando vai ser. Outra foi o escândalo que rolou ontem, que na verdade escândalo não seria se esse fosse um país normal. O presidente da Câmara, Fini, ex-fascistoso mas que ultimamente me parece ser a única pessoa lúcida desse país, foi pego comentando com um colega que Berlusconi está confundindo aprovação popular com imunidade total. Em um país normal, esse comentário teria a mesma importância que se ele tivesse dito que o céu é azul, já que em ambos os casos trata-se de uma coisa tão óbvia e indiscutível que não tem nem graça. Mas como a Bota é a Bota, aaaaah, crianças, fez-se um escarcéu, um escândalo, os jornais só falam disso e Berlusca, muito puto da vida, petulantemente disse que Fini “tem que se explicar, senão está fora”.

Esse aspecto do “ou comigo ou contra mim” é a coisa mais idiota, estúpida, maniqueísta, prejudicial da política italiana. Nesse ponto a Itália e o Brasil são praticamente gêmeos, já que em terras tupiniquins a coisa funciona do mesmo jeito, até onde eu sei. Há meses – há VARIOS meses – não se faz mais nada nesse país que não seja legislar contra ou a favor do Berlusconi. Não se faz absolutamente NADA pelo país, pra conter a crise, pra ajudar quem tá na merda, pra modernizar essa carroça medieval que é esse país, nada. Nada, nada, nada; o governo trabalha pra livrar a bunda do Berlusconi e a oposição trabalha pra tentar pulverizar esse filho da puta. Todo o resto ficou esquecido.

Depois ainda reclamam quando a imprensa de outros países sacaneia.

o crucifixo

Essa semana aconteceu uma coisa extraordinária.

A Corte Europeia dos Direitos Humanos decidiu que crucifixo em sala de aula viola a liberdade de religião, e condenou o estado italiano a pagar uma quantia praticamente simbólica como indenização por danos morais à mulher que recorreu à Corte, uma finlandesa de cidadania italiana (a história completa está aqui, com a entrevista feita com a família, em italiano). Fiquei emocionada quando ouvi a notícia e mais ainda depois que soube que todo o suporte legal foi dado pelos advogados da UAAR, da qual sou sócia. Ficamos todos emocionados, embora tudo o que está acontecendo agora fosse altamente previsível.

De maneira geral, todos os políticos criticaram a decisão, lógico, porque ninguém tem coragem de ficar contra a Igreja. Berlusconi já disse que vai recorrer, claro. Vários prefeitos disseram coisas tão simpáticas quanto “podem morrer todos eles, mas o crucifixo fica”. Outros escreveram cartas aos diretores das escolas “convidando-os” a expor o crucifixo nas salas. Os argumentos de quem é contra a decisão são dois, e vamos combinar que são os clássicos argumentos de quem não pensa: 1) o cristianismo é uma tradição italiana (imediatamente neguinho comentou, no fórum da UAAR, “vamos pendurar uma pizza em cada sala de aula então!”), e 2) o crucifixo é o símbolo do laicismo italiano. Tipo assim, hellooooooooo crucifixo laico? Oquei, oquei, não dá pra discutir, lógica não é o forte dessa gente.

O problema, logicamente, não é o crucifixo propriamente dito. É um símbolo, de péssimo gosto, por sinal, e mais nada. O problema, como sempre, é o que está por trás dele. E o que está por trás é exatamente esse comportamento arrogante desses prefeitos que, em vez de obedecer a uma lei europeia que tem poder legal na Itália, e que está certa, visto que segundo a constituição italiana este país é laico, fazem comentários absurdos como esses acima. Vou contar outra historinha pra ilustrar melhor.

Há alguns dias morreu uma senhora idosa em Padova (Pádua). Declaradamente ateia e mãe de um membro ativo da UAAR, ela tinha declarado expressamente que não queria nenhum ritual religioso quando morresse. Mas o padre da paróquia local, que fica rondando o hospital onde a velha morreu, cismou que quer dar a extrema-unção. Não só cismou: disse que assim que a família relaxar a vigilância ele vai lá dar os paramentos escondido, que o hospital “é casa dele e ele faz o que quiser”.

Minha mãe diz que nesses casos é melhor deixar pra lá porque jogar aquela aguinha idiota e vomitar meia dúzia de palavras sem sentido sobre uma virgem que pariu um deus “não faz mal”. É claro que não faz mal, já que rezar tem o mesmo efeito de ler uma receita de sopa de cebola, ou um trecho do Código Civil, ou o manual da sua máquina de lavar roupa. O problema não está na reza propriamente dita, assim como não está no crucifixo propriamente dito. Está no poder intocável que esses parasitas católicos tem, no dinheiro que eles sugam, na lavagem cerebral que fazem, no atraso no qual insistem em deixar esse país (e metade do planeta) impedindo as pessoas de pensar por si mesmas e de criticar o que quer que seja. Isso tem que acabar. TEM QUE ACABAR. Essa gente horrível tem que entender que nem todo mundo pensa como eles, que nem todo mundo está cagando pro que eles dizem, que tem gente que quer que vão todos pra puta que o pariu e que parem de indoutrinar as crianças, que a religião é, de verdade, the root of all evil. Se ninguém fizer oposição nunca eles vão continuar intocáveis sempre. Toda revolta tem que começar de algum modo, e espero que esse tenha sido um sinal de que uma lenta mas decidida onda anticatólica está se formando.

O resultado do recurso vai sair em breve, e se a decisão da Corte não mudar essa vai ser a solução final pra história; não há mais possibilidade de recurso ou apelo. Se assim for, vai abrir precedentes. E o dia em que a Carolina entrar na escola, se tiver crucifixo na sala de aula o bicho vai pegar, amiguinhos.

piuí

Eu adoro andar de trem. Acho um meio de transporte fenomenal. Além das vantagens óbvias – não polui, é mais barato – ele tem duas outras que eu considero fundamentais: é MUITO mais seguro do que andar de carro entre os motoristas selvagens aqui da Bota, e, putz, DÁ PRA LER! Dá-pra-ler. Dá pra ler no trem, cês tão entendendo? (Alguém vai dizer “ler ou trabalhar”, mas eu sou daquelas que acredita que o trabalho aborrece o homem, dá trabalho demais e atrapalha a vida, por isso tento pensar no assunto o menos possível. Além do mais acho que o lento passar da paisagem é perfeito pra descansar os olhos do livro, pra repetir mentalmente uma bela frase, pra tentar lembrar o nome de um personagem, pra absorver uma descrição e fazê-la funcionar no céLebro.)

Aqui na Itália, e em particular no interior da Libéria, onde eu moro, os trens são uma merda. São sujos (vocês devem lembrar da história dos carrapatos) e atrasam sempre, sempre, sempre. Não lembro se eu cheguei a comentar aqui, mas uma vez perguntei ao hominho da estação em Perugia por que raios o trem das 19:15 estava sem-pre atrasado, e a explicação dele me deixou de boca aberta. Vou tentar explicar brevemente antes de continuar com a minha reflexão ferroviária.

Os tipos de trem em circulação por aqui são os seguintes: diretto, regionale, inter-regionale, InterCity e Eurostar. Nunca entendi a diferença entre os três primeiros, que são os famosos catejecas. O InterCity é melhorzinho mas na única vez que peguei achei o trem velho demais pra diferença de preço. O Eurostar é o bam-bam-bam dos trens: custa beeem mais caro, tem beeeem menos paradas, em teoria é beeeem mais rápido e, ao contrário dos catajecas, seu bilhete tem dia e data pra usar e lugar marcado.

Pois então. O tal trem das 19:15 de Perugia pra Foligno, que era o que eu pegava pra descer em Assis, fazia conexão com um Eurostar que vinha de Milão. Como passageiro de Eurostar que perde conexão é reembolsado, a empresa prefere atrasar TODAS as conexões se o Eurostar partir com atraso pra não ter que reembolsar os passageiros desse trem. Os passageiros de todos os outros trens que se fodam. Então tá né.

Mas então. Como eu já cansei de dizer aqui, a Itália é lanterninha europeia em praticamente tudo, e no caso dos trens também não faz por menos. Além do transporte de passageiros ser ridiculamente eficiente, o transporte de mercadorias por via ferroviária é um dos menores da Europa: só 10% de tudo o que circula no país viaja de trem. É muito, muito pouco. Isso eu fiquei sabendo ontem, vendo Report (que eles pronunciam “réport”…), o único programa de jornalismo investigativo da televisão italiana, aproveitando que a Carolina chapou às nove da noite depois de um megaprograma de índio (more on that later). Em um certo ponto do programa começou-se a falar do acidente em Viareggio que matou mais de trinta pessoas em abril desse ano. O trem de carga simplesmente saiu voando dos trilhos e foi parar entre as casas ao redor da ferrovia. Não se sabe exatamente o que houve ainda, mas basicamente o lance é o seguinte: uma peça de um dos vagões estava fodidaça, com uma rachadura gigante. Tinha sido construída em 1974, na Alemanha. Aí a parada começou a ficar interessante: o vagão tinha sido matriculado na Alemanha e mais tarde foi vendido a uma empresa americana, apesar de fazer a linha Novara-Nápolis e portanto jamais sair do país. Segundo os acordos entre a Ferrovia dello Stato e as empresas de transporte, o dono de cada vagão é responsável pela manutenção, de modo que a Ferrovia dello Stato diz que a culpa foi dos alemães que não fizeram a revisão com ultrassom, o que teria evidenciado a rachadura; a empresa alemã diz que fez a revisão em novembro de 2008 mas que não encontrou defeitos e que portanto o problema era outro. Disso tudo ficou certa uma coisa: o que circula de trem caindo aos pedaços por aí não tá no gibi, porque não é possível inspecionar todos os trens que entram na Itália vindo de outros países (inclusive porque eles não são capazes de inspecionar nem os trens deles mesmos…) e porque, com essa confusão de não saber de quem é o quê, fica difícil apurar quem é responsável por qual coisa. Tudo muito confuso. E muito perigoso.

Não pego trem há muito tempo, mas estávamos considerando ir de trem a Firenze pegar meu visto americano no final do mês e mudamos de ideia. Vai que o nosso vagão também foi construído em 1974 na Alemanha e não fizeram ultrassom nele…