Quando a Carolina nasceu, uma das primeiras coisas que a gente pensou foi: caraca, onde é que essa garota vai estudar? Porque sim, há várias creches por aqui, públicas e particulares, mas todas enquadradas no esquema educacional italiano, que eu odeio – basicamente preparam a criança pra vida de decoreba que terão ao longo dos anos de escola, ao final dos quais serão os piores da Europa em praticamente todas as matérias. Pra não falar das duas horas – DUAS, 1 + 1 – horas de religião por semana já na chamada “scuola dell’infanzia”, o nome oficial da preschool aqui. Felizmente nesse meio tempo abriram a escola dela em Santa Maria, a 7 minutos aqui de casa e within a short walking distance da minha sogra.
A escola tem um nome ridiculamente pomposo porque é administrada por uma fundação esquisita que ninguém sabe direito o que faz, fundada por um napolitano (hm…) egocêntrico aparentemente sem nenhuma formação científica ou humanística ou o que quer que seja. Pelo que ouvi falar o negócio é uma espécie de culto da personalidade, sabe, e é seguido pelos seus “fãs” com um certo grau de fanatismo. Mas como isso não tem a menor influência sobre a escola, que segue linhas pedagógicas bem precisas senão não pode ser chamada de montessoriana, a coisa não me interessa.
Descobrimos a existência da escola quando vimos um panfleto no consultório da pediatra da Carol. O panfleto dava a data de um open day pros pais conhecerem a escola, que já tinha um ano de funcionamento. No dia marcado fui lá com a Carol e conversei muito com a diretora (que não é mais a mesma, infelizmente) enquanto a Carol ficou sozinha, pasmem, com uma das professoras, brincando com os brinquedos de madeira em uma das salas de aula. Ela normalmente è muito avessa a estranhos, mas naquele dia eu saí da sala e ela nem me deu tchau, ficou lá brincando com aquela garota novinha que ela nunca tinha visto na vida. Achei um bom sinal. Fiz a pré-inscrição naquele dia mesmo, e voltei em janeiro pra pagar a matrícula e formalizar a inscrição.
A história da Maria Montessori, criadora do método do mesmo nome, é muito interessante (vão procurar porque vale a pena). Por aqui fizeram há alguns anos uma minissérie sobre a vida dela, com a ótima Cortellesi no papel principal, mas eu nunca consegui assistir inteira. A verdade é que qualquer escolinha que não tivesse um crucifixo na parede nem aulas de religião pra gente já seria uma maravilha, pois estamos ficando cada vez menos pacientes com religiões em geral conforme passam os anos, e ter encontrado um lugar que não só não tem nenhuma ligação com esses desgraçados da igreja católica mas também segue um método que eu aprecio muito foi um presente dos céus (hohoho). Porque um dos lemas da Montessori é que as crianças têm que aprender a aprender. Aprender a gostar de aprender. E aprender fazendo.
Não há brinquedos de plástico nas salas, só de madeira, todos desenvolvidos pela própria Maria segundo a lógica pedagógica dela. Não há portas fechadas – nada de armários, só prateleiras abertas às quais as crianças têm acesso livre, pois tudo está colocado na altura delas e elas têm total liberdade de mexer e futucar no que quiserem. As turmas não são divididas por idade, mas sim pela capacidade das crianças (isso mais tarde; por enquanto a scuola dell’infanzia tem uma só turma com crianças de 3 a 5 anos todas juntas, obviamente com capacidades muito diferentes); segundo a Maria crianças menores têm muito a aprender com as maiores, e vice-versa. As professoras são mais observadoras do que outra coisa, deixando que as crianças aprendam sozinhas como funcionam os brinquedos e só entrando em ação quando a criança realmente não consegue fazer o que quer e começa a ficar frustrada. Mesmo assim, as intervenções têm como objetivo ajudar a criança a resolver o problema sozinha e lidar com a própria frustração, ensinando-a a insistir até conseguir e a ter orgulho de tentar fazer as coisas sozinha.
A gente aqui em casa sempre tenta estimular a Carol a ser independente, e de fato ela fica pau da vida se você tentar ajudar quando ela tá lá lutando pra fechar o casaco ou enfiar o pé no sapato ou guardar os DVDs na estante ou sei lá o quê. Desse ponto de vista ela tem sorte por eu não ter horário fixo de trabalho, porque às vezes ela leva uns dez minutos até conseguir fechar o zíper do casaco pra gente finalmente sair de casa… Mas enfim, essa independência é muito estimulada na escolinha. Todos os dias duas crianças são escolhidas pra servir o almoço. Cada criança tem seus próprios talheres, seu copo e seu guardanapo de pano guardados em uma espécie de envelope de algodão que aqui se encontra até no supermercado, e seu joguinho americano (facilita horrores em termos logísticos porque evita brigas, já que cada um realmente tem o seu e pronto). Cada uma bota a própria mesa, por assim dizer, e depois os dois “garçons” do dia servem a comida, que vem em pratos de plástico selados com filme plástico pra não derramar. Todas comem sozinhas e depois cada uma guarda suas próprias coisinhas no seu próprio saco de pano, que por sua vez é guardado na sua mochila, na qual vão pra casa pra serem lavadas pelos pais. É a coisa mais fofa: todos saindo da sala do almoço em fila, jogando os pratos sujos no saco de lixo fora da porta e carregando cada um seu saco com os seus pertences e o joguinho americano, que são guardados em lugares específicos em outra sala.
Cada criança também tem sua própria toalha de rosto, com o nome bordado ou etiquetado; cada toalha fica pendurada num ganchinho na entrada do banheiro, e acima de cada ganchinho tem a foto do dono da toalha, pra ninguém usar a toalha dos outros. Todas vão ao banheiro sozinhas (a Carol adora o vaso sanitário “pinininho”, tamanho megasmall) e só chamam a Sonia, a assistente (leia-se limpadora de bundas infantis), depois que já fizeram o cocô e precisam de ajuda pra se limpar. No vestiário, onde ficam as mochilas, cada criança tem outro ganchinho com o seu nome, onde fica pendurada uma bolsa com duas mudas de roupa. Cada uma tem um cabide com o próprio nome escrito, onde pendura o casaco quando chega e o jalequinho quando sai.
(O jalequinho, que eles chamam de “grembiule” – avental, é um clássico da escola italiana, e acredito que também seja usado em outros países europeus, não sei. Quadriculado pequenininho, rosa pras meninas (…) e azul pros meninos, com ou sem algum personagem bordado na frente, pode ser comprado em qualquer loja de roupa de criança ou supermercado. O da Carol tem a Minnie e eu comprei no supermercado mesmo. Ela queria o azul, mas só tinha bicho feio bordado, esses monstros do Ben Ten e outros horrores que ela nem conhece e detestou, então fomos de rosa mesmo. Apesar de cafona, porque tem uma golinha ridícula praticamente vitoriana, é uma ótima ideia, pois quem fica sujo é o jaleco e não a roupa.)
Outra coisa legal: ninguém entra de sapato nas salas de aula. Cada criança tem a sua própria caixa de sapato no vestiário, com um par de sapatinhos pra andar dentro de casa (hediondos) ou Crocs (que felizmente quase todas as crianças usam atualmente; são horrorosos mas pelo menos divertidos e alegres, enquanto que os tais sapatinhos têm sempre uma cara de pantufa de velho, eca). A criança chega, tira os sapatos, calça os Crocs, bota os sapatos na caixa, guarda a caixa no lugar, pendura o casaco, veste o jaleco e vai pra sala de aula. Achei sensacional, porque vamos combinar que poucas coisas no mundo são mais asquerosas do que sapato, néam. Aqui em casa não se entra de sapato; desde pequenininha ela tira os sapatos assim que entra em casa, bota no armário e fecha a porta, de modo que nada disso foi novidade pra ela.
No caso dessa escola dela, o fato de ter inglês também fez a diferença, porque nessa idade as escolas não são obrigadas a oferecer línguas estrangeiras (isso explica muita coisa). A escola diz ser bilingue, mas o termo não é correto porque pra mim escola bilingue é aquela na qual uma boa parte das aulas ou atividades é feita em outra língua, o que não é o caso: todos os dias as crianças têm uma hora de inglês, metade da turma de cada vez, com uma professora inglesa muito legal, e isso já é muito mais do que a maioria das outras creches, que não tem inglês nenhum, mas bilingue bilingue mesmo não é. De qualquer maneira, a Carol já começa a dizer “what’s this?”, “sit down”, “be careful”, “excuse me”, e a identificar e perguntar o significado de várias palavras nos desenhos que assistimos em casa (porque aqui é terminantemente proibido ver TV em italiano, só em português ou inglês). Por exemplo: um dia ela falou “sei lá quem é stupido” e eu disse que não se diz “stupido”, que é uma coisa feia, e ela disse “mas a vovó fala”, e lá fui eu explicar que na Itália as pessoas praticamente se enchem de porrada e se ofendem das piores maneiras durante conversas normais, plácidas, pacatas, quotidianas, e que aqui isso é normal mas no resto do mundo não, de modo que não se usa “stupido” e pronto. Poucos dias depois estávamos vendo A Bug’s Life e o Hopper diz “Do I look stupid to you?” ou “Do you think I’m stupid”, não lembro, e ela, horrorizada: o Hopper falou *sussurrando* stupido! Coisa feia! Quando eu leio The Very Hungry Caterpillar pra ela, ela lembra que a palavra “moon” também aparece no desenho do Jack (Nightmare Before Christmas), quando uma das bruxas diz que o Jack é tão maravilhoso que chega a ofuscar a lua ou coisa parecida. Quer dizer, estamos indo bem. Gostaria de mais horas de inglês por dia, e possivelmente chinês, mas por enquanto tá bom assim.
Mas o que me ganhou mesmo foi o questionário eLorme que tive que responder quando fiz a matrícula. Além das perguntas mais tradicionais (e que mesmo assim nenhuma outra escola aqui da região perguntou pra ninguém; nenhum amigo nosso respondeu a questionário nenhum quando botou o filho na escola), tipo se a criança mamou no peito, se já foi à creche antes, com quem ficava em casa se não foi à creche, se tem alergias alimentares etc, tinha muitas outras perguntas interessantes e inesperadas. Quantas horas por dia a criança passa em frente à televisão? A criança entende a importância de botar as coisas no lugar? A criança tem liberdade pra mexericar em tudo em casa? A criança gosta de experimentar comidas novas, diferentes? O que ela gosta de fazer, de brincar? Há livros em casa pra ela brincar?
E a lista de materiais e recomendações que a escola manda antes das aulas começarem? Maravilhosa. Desaconselham firmemente o uso de roupas com botões, cadarços, babados ou qualquer outra coisa que possa ficar presa ou incomodar a criança, assim como tecidos desconfortáveis. Praticamente imploram que os pais mandem a criança pra escola de moletom em vez de jeans ou denim, tecidos duros que alguém decidiu que eram confortáveis e essa propaganda enganosa foi sendo perpetuada até hoje (DETESTO jeans, não consigo imaginar roupa mais desconfortável do que um par de calças jeans, aquele tecido duro – porque é duro mesmo quando o jeans é amaciado – e aquelas costuras grossas e rígidas, cruzes). A Carol tem uma invejável coleção de leggings, comprados a 5 dólares no outlet da Carter’s em Boston, montes de blusinhas de manga comprida simplérrimas da Zara kids, blusas de moletom compradas no supermercado, todas roupas ótimas pra “bater” e que não vou ficar chateada se manchar de molho de tomate ou pilot. E pensar que o Menino Que Não Pode Suar vai pra escola de camisa social…