reunião de condomínio

O Mirco não tem paciência, e nem experiência com essas coisas, pois sempre morou em casa. Então depois do jantar ele se joga no sofá e me manda em missão condominial. Os outros vizinhos sempre perguntam, mas o teu marido nunca vem às reuniões, e eu sorrio educadamente e respondo simplesmente “não”.

O prédio é pequeno, somos poucas famílias, e mesmo assim tem gente que enche o saco. Eu tento não ser a primeira a reclamar pra não ser chamada de estrangeira chata, porque já sei que é isso o que acontece, e a coisa acaba descambando no argumento mais idiota do planeta (“se não gosta, volta pro lugar de onde você veio”). Na penúltima reunião eu estava decidida a esperar até que alguém mencionasse o lance da porta de entrada, e minha paciência foi recompensada: a vizinha gorducha do andar de cima (não a soldada, a do outro lado) falou exatamente o que eu queria dizer: PAREM DE BATER A PORTA DO PRÉDIO, PORRA! O edifício inteiro treme e não há a menor necessidade de bater, basta deixar que ela feche sozinha. É tão difícil? Dei um suspiro de alívio e concordei, animada. Mas jacaré parou de bater a porta depois disso? Não, né. Então eu perdi a paciência e botei um cartaz imenso na porta: Per l’amor del cielo, non sbattere la porta!!! PELAMORDEDEUS, NÃO BATAM A PORTA!!! Assim mesmo, com três pontos de exclamação, o que demonstra claramente o quão exasperada eu estava. Aconteceu o que eu já esperava: não só continuaram batendo a porta, como arrancaram o cartaz e botaram no meu escaninho.

Na sexta passada tivemos outra reunião, pra discutir o novo orçamento, feito pelo novo administrador (aqui não tem esse lance de síndico, quem administra normalmente é uma agência ou profissional liberal especializado, que não mora no prédio). O cara é um velho barrigudo, ex-professor, que fica puto da vida quando neguinho fala tudo junto e não se entende nada, e pede pra calarem a boca – meu ídolo. Depois de discutir os assuntos em pauta eu levantei a mãozinha, muito civilizadamente. Ele sorriu, deu uma piscadinha e me deu a palavra.

[paca] Na última reunião a Simona reclamou da porta batendo, vocês lembram. Todo mundo sabe que fui eu que coloquei o cartaz na porta, porque mesmo a gente tendo falado sobre o assunto as pessoas CONTINUAM batendo a porta. Não sei quem foi que teve a atitude infantil de arrancar o cartaz e botar no meu escaninho, e não quero saber. O que eu quero saber é qual é a dificuldade em NÃO BATER A PORRA DA PORTA. Vejam bem, o fato de que as pessoas não percebam, sozinhas, que fazer barulho incomoda os outros já é grave o suficiente. Mas quando outras pessoas reclamam e mesmo assim neguinho continua, realmente, crianças, é o cúmulo da falta de educação. O CÚMULO DA FALTA DE EDUCAÇÃO.

[senhora napolitana odiosa odiosa odiosa que fuma tanto que mesmo estando no andar de baixo e com as portas fechadas o cheiro chega aqui em casa] Não vamos fazer drama, acontece só de vez em quando…

[paca] Acontece vinte mil vezes por dia. Agora que estou de férias da faculdade e fico em casa o dia inteiro levo cada susto della madonna, porque quando batem com força o prédio inteiro treme.

[senhora napolitana odiosa] Sei lá, eu nunca escuto nada…

[paca] A senhora mora nos fundos e passa o dia com a televisão ligada ou no quintal. Todas as minhas janelas dão de frente pra rua e eu passo os dias trabalhando ou lendo; EU ESCUTO O BARULHO VINTE MIL VEZES POR DIA.

[Simona e a mulher do marechal confirmam]

[mulher do caminhoneiro do apartamento igual ao nosso, do outro lado] Sabe como é, às vezes a gente vem com as mãos cheias de sacolas de compras e não consegue segurar a porta…

[paca] Não precisa segurar a porta, ela fecha delicadamente sozinha. É SÓ NÃO BATER. A batida é voluntária, proposital, não é uma coisa passiva. Se a porta fez barulho é porque quem passou puxou com força, com vontade. E quem está com as mãos cheias de sacolas de compras tem que realmente se esforçar pra liberar dois dedinhos e puxar a porta.

[senhora napolitana odiosa, com quem eu nunca tinha falado antes] Sabe de uma coisa, estou achando ótimo que dessa vez eu vim à reunião, assim a gente passa a se conhecer [tradução: Agora já sei que você é um pé no saco que reclama de tudo]. A gente só precisa ser civilizado pra poder viver em harmonia, não é verdade. Não precisa se exaltar por coisas menores.

[paca, incazzatissima] NÃO SÃO COISAS MENORES. Faz barulho, treme o prédio, e sobretudo NÃO É NECESSÁRIO! Por que bater a porta se basta NÃO FAZER NADA PRA PORTA NÃO BATER E NÃO INCOMODAR OS OUTROS? É tão difícil assim não fazer nada?

[senhora napolitana odiosa, acendendo um cigarro] De repente são as crianças…

[paca, olhando pro cigarro com a cara mais nojenta que os músculos faciais humanos são capazes de reproduzir] Bom, em algum momento as crianças precisam ser educadas, né não.

[silêncio]

[paca] Tipo, se alguém disser pra elas que não se deve bater a porta, se elas forem minimamente obedientes e educadas não vão mais bater, né não.

[silêncio]

[velhinho administrador] Bom, a gente pode checar a mola, que de tanto baterem a porta já deve ter ido pras cucuias, e depois de regulá-la novamente de modo que a porta feche delicadamente sozinha ninguém vai ter mais desculpa pra batê-la. Vou botar um cartaz com a minha assinatura embaixo, e aí ninguém vai botar de volta no escaninho, ok?

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O cartaz do velhinho diz assim: “bater a porta incomoda os outros e portanto é falta de educação. Pede-se a gentileza de deixar que a porta feche sozinha”. Hohoho.

A bateção não parou, mas diminuiu sensivelmente. Estamos na Itália, afinal.

ih-õh

Oficialmente nós não moramos na roça. Nosso bairro é “urbanizado”, apesar de que nos fundos da nossa rua tem um campo ELORME de trigo: há mais prédios que casas, muito estacionamento, um pequeno centro commerciale (uma espécie de galeria) com bar, farmácia, supermercado, lavanderia e alguns escritórios. Mas alguém, em algum lugar aqui perto, tem um galo. E o galo canta. Não é um problema; se não fosse o galo a me acordar seria o sol mesmo, como sempre, ou a passarinhada escandalosa que volta e meia aterrissa na varanda e começa a cantar aos berros (na Itália até os passarinhos berram). E dá aquele ar bucólico interessante. Não sei de quem é o galo, pois as casas do final da rua não têm galinheiro, mas suspeito de uma casa grande, em uma rua transversal sem saída, onde mora um casal de velhinhos. Velhinho italiano não pode ver um quadradinho de terra dando sopa que planta logo um pé de tomate ou enfia uma galinha. Prática louvável, pois pelo menos assim você sabe o que está comendo.

Mas eu queria falar era de outro bicho. Além do galo, em algum outro lugar alguém tem um asno. Todo dia de manhã o bicho dá a sua cantadinha. No começo eu nem reconhecia o barulho, porque criança crescida na cidade grande aprende a imitar o barulho pra sacanear outras crianças chamando-as de burras, mas aposto que a maioria nunca nem viu um de verdade. Então eu ouvia aquele lamento solitário lá longe e pensava, o que raio será isso, caramba. Quando perguntei pro Mirco ele respondeu na maior naturalidade: é um asno, ué. Como assim, Bial. Ele também nunca viu um, porque afinal estamos na roça mas não nas imensidões rochosas da Sardenha onde judas perdeu as botas, as meias e os protetores de calo do Dr. Scholl, e as velhinhas ainda vão de burrico visitar as vizinhas, que moram a quilômetros de distância. Mas ele jurou que era um asno, e quem sou eu pra discutir. Então agora a sinfonia matutina é: galo, passarinho escandaloso, asno, depois a soldada do andar de cima caminhando com a delicadeza de um tanque de guerra, depois o marechal dos Carabinieri do andar de baixo falando aos berros no telefone na varanda. Quem disse que a vida na roça era tranqüila…

ontem

O dia ontem foi animado.

Passei a manhã trabalhando como intérprete pra um pequeno grupo de indianos em Bevagna. O dia estava lindo, a estrada corta campos de girassol em flor, quem me arranjou esse lance foi a Vanessinha, que trabalhou comigo lá no manicômio e que eu adoro e ia estar lá pra gente fofocar. Cheguei cedo e enquanto estava estacionando ela ligou pra dizer que eles estavam atrasados e que depois explicava. Então aproveitei pra dar umas voltas na cidade, que eu não conhecia de dia pois sempre vamos lá em junho, pra festa das Gaite, e estamos acostumados a ver Bevagna no escuro e entupida de turista e de moradores usando roupas medievais. Levei a minha mãe lá na primeira vez em que ela veio, mas não lembrava mais de nada, então foi um passeio legal. Comprei pão fresquinho, bati papo com a padeira, comprei alface pro almoço e fui pro museu esperar Vanessinha e os indianos. O atraso foi de quase 20 minutos porque um dos caras cismou de rezar na hora de sair e segurou o grupo todo. Se eu não tivesse zilhões de motivos gigantes pra odiar toda e qualquer religião, essas pequenas coisas bastariam…

O tour inicialmente incluía uma visita aos quatro “mestieri” (“métiers”) que ficam abertos o ano todo, uma às termas e uma ao anfiteatro romano. Por causa da rezação idiota do imbecil o anfiteatro ficou de fora. Mas os mestieri mais do que compensaram a chateação. Eu comentei que quando fomos jantar lá com o garoto da África do Sul vimos a fabricação da seda, o sistema pra torcer o fio e os teares pra fazer o tecido. Então; fomos lá outra vez, depois vimos a fabricação do papel, depois de velas e finalmente o estúdio de pintura. Esses quatro ficam abertos o ano todo porque a produção é toda vendida, com a exceção da seda: não há mais criação do bicho-da-seda nessa parte do país, mas como eles têm uma máquina de torcer fio construída tim tim por tim tim seguindo as descrições de um documento encontrado em Lucca com data de 1352, e essa máquina é única no mundo e foi uma pequena revolução industrial na época, também fica aberta aos visitantes o ano inteiro.

O lance da seda é o seguinte: os casulos são colocados em água fervente pra desmanchar uma substância produzida pelo bicho que é uma espécie de cola, cuja função original é impedir que o casulo se desenrole. A água quente também tem como objetivo matar o verme imediatamente, porque se ele tiver tempo de tentar escapar pra não morrer cozido acaba furando o casulo. Como cada casulo é feito de um único fio, um furo significa que ele tem que ser jogado fora. Quando os casulos começam a desfiar, ainda na água, uma espécie de maquininha a pedal ou manivela enrola cada cinco fios de uma vez, e é esse conjunto de cinco fios, que ficam colados uns nos outros através dessa cola desmanchada pelo calor, que vai ser torcido e depois usado pra tecer. A tal maquinona revolucionária substituía o trabalho de umas 2000 pessoas, pois em um turno de 9-10 horas de trabalho ininterrupto era capaz de torcer 72 novelos de fio. São 360 torções a cada 70 centímetros; imaginem isso tudo feito manualmente. Quem operava a máquina era uma coitada que sentava numa espécie de banquinho dentro da própria máquina e ficava caminhando em marcha a ré, empurrando a estrutura interna, que é giratória; através de um sistema de parafuso sem fim os novelos giram, e um arame com uma forma particular na ponta de cada novelo, girando, torce o fio. É difícil de explicar; quem quiser pode visitar o site aqui(em italiano). Quem quiser só ver a foto clica em “Foto” na esquerda, depois em “I Mestieri” e finalmente em “Il Torcitoio”.

O papel também é feito com a ajuda de uma espécie de máquina, alimentada pela energia de um moinho de água. O papel não é vegetal, mas feito com trapos de tecido (principalmente linho e juta), que ficam de molho na água com cal viva pra quebrar e esbranquiçar as fibras. Aquela massa depois é colocada em tanques, onde vai ser massacrada por essa parte mecanizada do processo, uns negócios tipo uns martelos que batem, batem, batem, até transformar os trapos em uma polpa. Essa polpa depois vai pra um tanque com água e sal (conservante), é recolhida manualmente em uma espécie de tela já no formato A4 que todos amamos e conhecemos, escorre um pouquinho, e é virado em cima de um pedaço de tecido apoiado sobre uma espécie de sela. Várias camadas desse tecido, cada pedaço com a sua folha de papel, são empilhados e colocados sob uma prensa, pra eliminar a água em excesso. Cada peça (tecido + papel) então é tratada com um líquido fedorento, resultado da fervura de ossos de animais e restos de pergaminho, pra impermeabilizar o papel e deixá-lo resistente ao longo do tempo (mérito da proteína animal presente nesse líquido). Sem esse tratamento final seria como escrever com caneta-tinteiro em papel higiênico, sacam. O papel chegou à Europa da China através dos árabes, que no entanto tratavam o papel, como os chineses, com extratos vegetais. Não fedia, mas também não durava nada, e essa técnica fedorenta transformou os italianos em mestres da arte de fabricação do papel reconhecidos no mundo inteiro. Enfim, depois do tratamento fedorento rola uma prensa de novo, e depois as peças são penduradas pra secar. Depois de secas as folhas de papel se soltam facilmente do pedaço de tecido, e estão prontas pra usar. Não preciso nem dizer que comprei logo um caderninho micro de papel feito ali mesmo e encadernado também manualmente em couro. Lindo.

Depois fomos ver a fabricação de velas. Vela de rico, feita de cera de abelha, que não fede nem faz fumaça, ao contrário das velas de sebo que os pobres usavam. Você derrete a cera em banho-maria, de modo que a temperatura não passe nunca dos 85 graus. Pendurado por cima do panelão tem uma espécie de roda com os pavios, feitos de fios de juta torcidos, pendurados nos raios. Cada pavio recebe um banho de cera derretida com a ajuda de uma concha, daquelas de feijão mesmo, por 20 vezes, até que se criam esses “charutos” compridos. Enquanto ainda estão morninhos, e portanto macios porque a cera não endureceu completamente, cada dois desses charutos são torcidos juntos, pra virar uma vela bonitinha e com a vantagem de gerar mais luz do que velas “single”, já que são dois pavios queimando juntos. A cera de abelha é muito melhor do que o sebo porque não escorre e queima até o final. E você sabia que a palavra italiana pra band-aid é cerotto porque quando alguém se cortava bastava cobrir a ferida com um pingo de cera derretida?

Finalmente o estúdio do pintor. Vimos a preparação dos pigmentos minerais e vegetais, as receitas das cores anotadas em carvão na parede, a preparação das tábuas de choupo tratadas com gesso, a preparação do fundo da tela com terra di Siena, depois o alisamento com uma espátula de ágata, a aplicação de folhas de ouro e a pintura final. Muito interessante.

As termas também são lindas, os mosaicos em preto e branco visíveis no chão, mas não tem uma história interessante por trás, então vou parar de chatear vocês.

Vocês não ficam impressionados de ver como a memória da gente é seletiva? Eu reli Ask the Dust (tá, em parte) pra prova de literatura mas como absolutamente odeio esse livro não lembrava de nada e não respondi nada, e acabei com um 23/30. Mas lembro de todos os detalhes da máquina de tecer o fio da seda. Acho sensacional isso.

o porão do fundo do poço tem subsolo

Depois que os magistrados começaram a se revoltar depois daquele decreto-lei ridículo que interrompia processos considerados “menos graves” (leia-as aqueles em que o Berlusconi está envolvido), imaginem o que o governo fez: prometeu esquecer esse decreto-lei se o Senado aprovar outro que dá imunidade TOTAL aos 4 cargos mais altos do governo (presidente do conselho dos ministros, que é o próprio Berlusca, presidente da república, presidentes do Parlamento e do Senado).

E vocês aí reclamando do Daniel Dantas.

finalmente!

[ring ring]
[paca] Pronto.
[voz feminina] Vieira?
[paca] Sì.
[voz feminina] É a polícia.
[paca, raciocinando] Ãn.
[voz feminina] Teu documento tá pronto.
[paca] AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!!! ALELUIA!
[voz feminina, rindo] Sabia que você ia gritar! Pode vir hoje, se quiser, eu estou aqui até as duas.
[paca] Tô indo, tô indo!

Fiz uma fornada de cookies com gotas de chocolate e lá fui eu correndo pra Assis pra pegar o maldito documento no Commissariato. Quem me ligou, e quem estava lá sozinha, porque os colegas estão todos de férias, foi a minha policial preferida, a que há anos renova os meus documentos e que me reconhece sempre (“você não é aquela dos mil sobrenomes?”). Atacou os cookies, agradeceu e me mandou embora rindo, “agora tão cedo a gente não se vê!”.

O novo permesso di soggiorno por motivos familiares vence só em 2012, e até lá, espero fervorosamente, a minha cidadania portuguesa já terá saído e não terei mais que me preocupar com essas coisas de pobre. A missão da semana agora, então, é encontrar passagens baratas com a RyanAir de Perugia pra Barcelona, porque temos um casal de CouchSurfers que nos convidam praticamente todo mês, e além disso tem o José, que está indo passar uma semana lá com a família e tem um apartamento livre nos esperando. Yaaaaaaaaaaay!

maturità

Essa semana os estudantes italianos estão sofrendo com as provas chamadas “esami di maturità”, um primo distante do vestibular (porque é o governo que faz a prova e não as faculdades, mas é preciso passar pra poder entrar pra universidade). Tudo muito parecido com o que acontece no Brasil: fica-se falando do assunto a semana inteira, os estudantes reclamam do volume de coisas pra estudar, discute-se a roupa que os alunos usam quando vão fazer as provas, reclama-se do calor (que chegou só ontem à Bota), etc.

Quase todos os anos rola algum problema com as provas, mas dessa vez a coisa foi séria. Em primeiro lugar, a prova de italiano tinha um erro grosseiro: uma questão pedia pra comentar o papel da mulher em uma poesia de Montale (um chato de galochas), quando na verdade o poema tinha sido escrito pra um homem, um amigo seu. Um problema também na prova de grego antigo (sim, aqui ainda estudam-se grego antigo e latim), que parece que tinha um pronome faltando. A prova de inglês tinha erros descritos como inacreditáveis.

O mais legal foi que dez minutos antes da prova o site studenti.it mostrava as questões e as respostas, com direito à imagem escaneada do problema de matemática e tudo! Sempre vaza alguma coisa, não tem jeito. E apesar dos celulares proibidos, é lógico que muita gente usou e abusou dos SMS em telefones escondidos sabe-se lá onde, e as perguntas e respostas apareciam em tempo real nos celulares dos pais, enviadas pelos filhos, teoricamente incomunicáveis nas salas onde foram feitas as provas.

Esse país é realmente uma pândega.

lo stato sono io

Desculpem, mas não consigo mudar de assunto.

Berlusconi está tentando aprovar um decreto que suspende por dois anos os processos com penas inferiores a 10 anos, em teoria pra “agilizar os processos mais longos e graves”. O processo pendente contra ele está na primeira categoria. Além desse decreto salva-premier ele também já avisou que não aceita a juíza desse seu processo, com a desculpa que ela é claramente de esquerda, de acordo com declarações e textos seus encontrados online, e portanto parcial. Os juízes estão putos, putos da vida, e a coisa está esquentando. A falta de uma esquerda forte e conseqüentemente de uma oposição forte deixou Berlusca com as rédeas tão, tão soltas que ele está literalmente deitando e rolando, e a minha esperança é que chegue uma gota d’água que seja realmente a última, e alguém, pelamordedeus, alguém se rebele e faça alguma coisa pra parar esse homem!

Enquanto isso, desbarataram um esquema que rolava na Sicília que funcionava assim, ó: a maçonaria (que pra quem não sabe inspirou vários grupos mafiosos italianos e não) tinha gente infiltrada nos tribunais e cortes sicilianos, e juízes comprados pra simplesmente não tocar processos contra mafiosos, não fazer nada, até que os crimes entrassem em prescrição. Estamos falando de crimes pros quais a pena pedida era a prisão perpétua, vejam bem! Não sei direito os detalhes da descoberta do esquema, mas felizmente foram presos vários juízes e vários maçons, e os processos estão sendo trabalhados pra mandar os mafiosos pra prisão.

Vocês tinham alguma dúvida de que eu sempre torço contra a Itália? Juro. Ainda mais quando jogam contra a França, que eu adoro, e ainda mais quando jogam pior, o que acontece quase sempre. Acho horrível que haja lugar no esporte pra sorte; os italianos ontem jogaram pior, os dois gols que fizeram foram por sorte ou por erro da França, eles forçam faltas no adversário. E comemoram como se tivessem feito um jogão, sacam. Isso me deixa irritada assim bem mais que um pouquinho. Mas ninguém disse que a vida é justa, e olhe a Itália indo pra frente no Campeonato Europeu e a França eliminada sem ter merecido. Domingo a Itália joga contra a Espanha, que tem um time ótimo. Acendamos velinhas.

da série “pára a Itália que eu quero descer”

Quando você acha que chegou ao fundo do poço, algo acontece e te prova que fundo do poço tem porão.

Não contente com esse lance da proibição de publicar escutas telefônicas (com pena de até 3 anos de prisão pro jornalista que publicar, e obrigatoriedade de uma junta de juízes pra solicitar uma escuta), a notícia do dia é que agora Don Berlusca quer passar uma lei que proíbe processos contra os premiers (lembrem-se de que ele foi absolvido de tipo OITO há alguns anos, alguns por prescrição do crime, e ainda há outros pendentes atualmente). Não, não estou ficando maluca; leiam de novo: o premier quer uma lei que dê imunidade total aos premiers. Na minha terra isso se chama ditadura; e na sua?

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Essa semana o governo decretou que pra resolver o problema da segurança pública o que tava faltando mesmo era o exército. Então deslocou 2500 soldados em 15 grandes cidades do país, pra ajudar a patrulhar as ruas. O problema, como sempre, é que não se sabe bem o que acontecerá quando um soldado vir, por exemplo, um ladrão roubando uma loja, suponhamos uma joalheria, que é coisa bastante comum por aqui (comum pros padrões europeus, bem entendido). Visto que, como em todos os países do mundo, quem cuida da segurança interna é a polícia, e SOMENTE a polícia, em teoria o soldado em questão deverá chamar a polícia pra pedir autorização pra agir.

Quem mais já tá careca de saber que essa palhaçada não funciona levanta a mão.

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E a raiz do problema, onde estará? Todos os dias ligo a TV religiosamente às 7:30 (a essa hora já acabei de malhar e estou tomando café) na La7, único canal que presta, pra ouvir o Enrico Vaime. Já falei dele aqui, mas vou falar sempre mais, porque é uma das poucas cabeças pensantes desse país estranho. Hoje o assunto era a educação. Os professores italianos são muito mais numerosos do que em outros países europeus; são também os mais mal pagos e os mais velhos. Há alguns anos tentou-se criar um sistema de avaliação periódica dos docentes da escola pública, dando aumentos e incentivos aos que se saíssem melhor; os professores se revoltaram e fizeram uma greve que durou séculos. Como tudo aqui, as escolas também funcionam na base do pistolão, e se o sistema da meritocracia fosse realmente introduzido metade desse povo sairia voando pela janela. Uma pesquisa com os estudantes mostrou que 80% deles ODEIA a escola – veja bem, não aquela coisa normal de aluno que reclama mas na verdade fica contente quando volta às aulas: ODEIA foi o termo utilizado – e que não sei quantos por cento acreditam que a educação não serve pra nada, já que basta conhecer as pessoas certas pra arrumar um bom emprego (leia-se um emprego onde não se faz absolutamente nada e ganha-se bem). Os alunos não têm o menor respeito pelos professores; as salas de aula são uma bagunça desgraçada, e o professor praticamente fala sozinho. Vejo isso na minha turma na faculdade; isso tem que ter começado em algum lugar, e certamente foi na escola elementar. Os pais têm menos respeito ainda, e volta e meia há casos de professor surrado pelos pais porque deu nota baixa a um aluno. “Como o senhor ousa dar essa nota ao meu filho?” é o clássico sinal de alarme antes dessas surras. Os pais detestam os professores porque acham que trabalham pouco (os três meses de férias), não sabendo que ensinar é uma coisa muito, muito, MUITO cansativa e que as tardes livres na verdade são passadas preparando as aulas, preenchendo papelada, corrigindo deveres e provas. E tem o lance das férias, que o Vaime comentou muito naturalmente mas eu acho tão nonsense que jamais passaria pela minha cabeça: se o professor manda o aluno em recuperação, a família não pode sair de férias. E férias aqui são sagradas, porque senão como é que o povo vai se tostar na praia? Não se esqueçam que aqui na Europa poucos moram em cidade de mar, que normalmente são estações balneárias que só funcionam no verão, e mesmo os que moram o ano todo não têm, nem de longe, a relação que os brasileiros têm com a praia. Praia é igual a férias, e férias é igual a praia. Criar problemas desse tipo é uma coisa grave por aqui.

Estou ficando muito cansada de tudo isso.

italianices

O escândalo da semana é tão escandaloso que eu não tenho palavras pra descrever.

A polícia desmantelou um esquema em uma clínica de Milão, do qual participavam médicos e enfermeiros, e que prejudicou centenas de pessoas nos últimos anos. Prestem atenção: os cirurgiões simplesmente falsificavam laudos e operavam pacientes de coisas que não tinham, “escolhendo” as patologias que pagam mais ao médico. Exemplo: paciente com tuberculoma foi operado com o diagnóstico de câncer do pulmão, porque o médico recebe por um tumor quase dez vezes mais do que por um tuberculoma ou outro nódulo bobinho. Não só o paciente não ficou curado, porque tuberculose se cura com antibióticos e não com cirurgia, como voltou ao ambiente de estudo ou trabalho, já não lembro mais, e contaminou outras pessoas. Paciente com nódulo fibroso no seio, operada de mastectomia com diagnóstico falso de tumor de mama, porque, novamente, tumor paga mais. Paciente que quase sofreu uma tireoidectomia absolutamente sem necessidade. Entre outras coisas igualmente fofinhas.

As conversas telefônicas gravadas eram assim de dar calafrios. Os cirurgiões ficavam putos da vida quando alguém contestava o “diagnóstico” ou pedia mais exames complementares. E quando alguém da administração pediu que eles fossem mais cuidadosos ao abrir material esterilizado, porque a esterilização é cara pra cacete e se você abre um pacote e depois não usa tem que mandar pra esterilizar outra vez, o cirurgião prontamente respondeu: olha, se pra vocês isso é um problema eu posso perfeitamente usar o parafuso [da embalagem aberta, e portanto não mais estéril] em um paciente idoso, com pouca expectativa de vida… Prestem atenção de novo: estava-se falando de um parafuso pra prótese óssea, que é portanto enfiado DENTRO do osso do paciente com um instrumento muito parecido (leia-se igual) a uma furadeira Bosch. Ao contrário do que pode parecer, o osso não é uma coisa morta, mas um órgão muito vivo, sim senhor, e ainda por cima com a medula óssea no interior (se for osso longo tipo o fêmur), produzindo as células brancas de defesa e as vermelhas carregadoras de oxigênio (e que são meio lemmings, se auto-extingüem em 120 dias, “suicidando-se” lá no baço, por isso a necessidade constante de repor as que morrem) sem as quais não vivemos. Osteomielite (a infecção dos ossos e da medula óssea) é uma coisa muito, muito difícil de tratar, dolorosa pra cacete e deformante, e não importa se o paciente tem 100 anos e muito provavelmente não vai passar do próximo outono; ninguém merece. Digamos que eu, que normalmente sou contra a pena de morte, apesar do que possa parecer, acho que nesses casos o requinte de crueldade seria inclusive um complemento de muito bom tom.

Além dos pacientes diretamente prejudicados, muitos dos quais morreram na sala operatória, a coisa toda criou problemas pros outros 800 funcionários da clínica, que se viram sem trabalho e sem salário (a clínica foi fechada e todos os pagamentos suspensos), e pros outros não sei quantos pacientes, que precisam de tratamento e ficaram de mãos abanando. Legal, né.

Enquanto isso, na Sala da Justiça, Berlusca quer porque quer aprovar a lei que proíbe a publicação de toda e qualquer escuta telefônica. Coisa de quem tem rabo preso, lógico, porque como diz o Tonino (ex-Ministro da Infra-Estrutura e meu ídolo político por essas bandas), quem não faz besteira não tem medo de ser pego. Que nojo de homem, nojo, nojo, nojo. A minha esperança de que a opinião pública se rebele contra essa lei idiota depois do escândalo na tal clínica, que só foi descoberto justamente através das escutas telefônicas, é praticamente nula; estou aqui há tempo demais pra achar que alguém liga pra alguma coisa.

Bush está visitando Roma, que, como vocês sabem, é tudo na vida, e a cidade está totalmente bloqueada. O trânsito, que já é uma delícia, está pior ainda. Não sei quantos mil policiais foram deslocados pra fazer a segurança das ruas por onde o senhor DWI vai passar. Estacionar ficou mais impossível do que o normal. E pra completar a pantomima, foram retiradas não sei quantas caçambas de lixo das ruas, pra não estragar o visual, digamos assim. Vocês reclamam do Lula, mas ele pelo menos tem a desculpa de ser pobrinho e ignorante, no controle de um país pobrinho e ignorante. Aqui na Bota a desculpa qual é?

A impressão que eu tenho é a de estar testemunhando a queda do Império Romano.

P.S.: Hoje, se não me engano, Bush e Berlusca vão encontrar o Papa. Uma bombinha bem mirada resolveria tantos problemas, né não… Longe de monumentos históricos, por favor.

várias

Não vou fingir que entendo de política, muito menos norte-americana, mas eu gostei do discurso da Hillary. Aqui.

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O tempo anda uma MER-DA. É a primavera mais climaticamente desagradável dos últimos 200 anos, dizem. E parece que vai ser assim até o próximo inverno: vento frio, chuva e sol alternando-se durante o dia. Pelo menos aqui. No norte anda chovendo a cântaros e deslizamentos de terra são a última moda. Acidentes nas estradas também não faltam, porque se o italiano já dirige feito um animal em condições normais de temperatura e pressão, imaginem em pista molhada e com visibilidade reduzida. Eu, pessoalmente, entro numa espiral de mau humor todos os invernos, e essa cortação de barato meteorológico me deixou muito pra baixo. Pensar que quando esse tempo bosta terminar vamos estar já nos dias curtos e escuros do inverno me deixa louca. Mas fazer o quê.

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Sábado fomos ver Then She Found Me, com a Helen Hunt. Meudeus, como ela tá VE-LHA! E, na boa, até entendo não querer se plastificar toda, aceitar o envelhecimento numa boa e tal, mas cara, tem rugas que praticamente GRITAM “quero botox!”. Magra, macérrima, a pelanca solta acentuando as rugas, socorro! O filme propriamente dito é interessante, lentíssimo mas não horrendo, tem seus momentos e tal, mas parece que o pré-requisito pra trabalhar nele é ser feio pacas E mal vestido pacas – não se salva nem o Colin Firth, quéridos, que passa o filme inteiro com cara de quem não toma banho há uma semana. Não importa que ele é pai separado com dois filhos pra criar: roupa amassada é perdoável; cara de sujo, nem pensar. Saí do cinema com um discreto nervoso, porque não posso ver gente suja, e odeio mulher molamba usando sandália de turista alemão e sem nem um rímel pra dar uma levantada (pra não falar nas rugas pedindo botox).

E ontem vimos Il Divo, filme italiano sobre Giulio Andreotti, a mafia guy if I’ve ever seen one, senador vitalício, corcunda, com cara de Yoda, asqueroso, talvez o homem mais poderoso do país, com toda a desonestidade e a podridão que isso implica. Podia ser um filme interessante, mas é tão, tão, TÃO lento que eu tava quase cortando os pulsos. Não tenho paciência pra lentidão, que pra mim deveria ser punida com chibatadas em praça pública, e Il Divo tem ritmo de cinema iraniano. Não dá. Não vejam. Não-ve-jam.