não bom

Fim de semana passado, andando pela calçada até o restaurante chinês de Ponte San Giovanni, vimos que vários dos carros estacionados (na calçada, porque a cidade tem uma falta de vaga crônica) tinham um folhetinho no pára-brisa. Normalmente é publicidade de loja de sapato ou lavanderia, mas dessa vez o título chamou a nossa atenção: “NÃO À SOCIEDADE MULTI-RACIAL”. Roubamos um e levamos pra dentro pra ler enquanto o nosso arroz cantonês e o frango com amêndoas não chegavam.

O conteúdo do folheto é de arrepiar. Vou traduzir pra vocês, incluindo erros de gramática e pontuação:

“Os italianos não querem a sociedade multi-racial, esta é no entanto desejada e nos é imposta pela alta finança internacional, pelas multinacionais, por lobbies político-religiosos cosmopolitas. Nós nos fazemos uma pergunta que para muitas pessoas é desconfortável: a sociedade multi-racial é uma coisa boa ou ruim para o povo italiano? Na nossa opinião é uma coisa ruim.

350.000 de ciganos

Estão atualmente despejando-se na Itália para infestar acampamentos e favelas. Vivem com os resultados de atividades criminais: rapinas, furtos, receptação de objetos roubados, comércio e exploração de crianças-escravas: esta é a “Gomorra” que nenhum Saviano [o autor de Gomorra] jamais contará a vocês.

A turbulenta etnia rom [os ciganos] se une, assim, às massas dos invasores africanos e asiáticos que tentam substituir a nossa [etnia] na nossa Terra.

É um lugar-comum muito enganador pensar que “um imigrante que trabalha é preferível a um imigrante que não trabalha”: a verdade é que o povo italiano está sendo ameaçado na sua própria sobrevivência, na sua integridade, na sua identidade.

É PRECISO PARÁ-LOS

. Eliminar os fluxos migratórios dos comunitários [quem pertence à Comunidade Européia é chamado de comunitário, quem não pertente é extra-comunitário] rom através da suspensão imedata do tratado de Schengen.

. Fechamento das fronteiras.

. Expulsão de todos os rom – os prefeitos devem decidir o afastamento dos rom (com esvaziamento e tratamento dos acampamentos nômades) e de todos os cidadãos extra-comunitários que tenham sido sinalizados às autoridades de polícia ou que possam ser perigosos para a segurança dos cidadãos.

. Expulsão de todos os romenos que tenham violado a lei italiana.

. Repatriar todos os extra-comunitários presentes hoje no território nacional, incluindo os de segunda ou terceira geração. [NO COMMEEEEEEEEEEEEEENTS]

. Afirmação do direito dos cidadãos italianos à auto-defesa.

. Proibição absoluta de vender bens imobiliários das cidades históricas a imigrantes extraeuropeus.

. Dar preferência aos italianos nas listas de espera de creches e casas populares [tipo BDNES].

VAMOS PARAR A INVASÃO!”

**

Não vou comentar a cretinice do ponto sobre expulsar imigrantes de segunda e terceira geração, porque tenho mais o que fazer. Também não vou comentar que os ciganos são mesmo uma farpa gigante no dedo da Europa, ninguém gosta deles, ninguém sabe o que fazer com eles, todo mundo preferiria que eles não existissem, mas é um problema que até agora não tem solução.

O problema, senhores, é que essa gente vê os imigrantes como uma massa de invasores que querem substituir os italianos. O problema é esse “não à sociedade multi-racial”. Dali pra linchamentos de gente “diferente” é um pulo. O representante da comunidade judaica de Roma comentou: “Com a gente começou assim”.

E já está acontecendo. Travestis, ciganos e africanos já foram vítimas de violência em algumas cidades do norte. Os agressores se sentem protegidos porque o novo governo baseou toda a sua campanha eleitoral no lance da segurança pública, que pros extremistas de direita é ameaçada por imigrantes. Da máfia ninguém fala, dos italianos que se drogam e alimentam o mercado de entorpecentes ninguém fala. Vamos mandar embora os imigrantes! Outro dia li em um jornal que uma médica estrangeira residente em Parma, casada com um italiano e aparentemente bem integrada, se despediu de um paciente dizendo a ele pra tomar cuidado com a saúde. Ao que o paciente respondeu: de agora em diante, doutora, é a senhora que vai ter que tomar cuidado com a sua.

Essa semana foi aprovada a lei que transforma a imigração clandestina em crime. Ou seja, se você for pego sem documentos não é mais simplesmente repatriado, é PRESO. Mas tem um porém: essa lei não se aplica a babás e empregadas domésticas. Por que será, né…

Essas últimas eleições foram o pior acontecimento da história recente desse país, acreditem. A coisa ainda vai feder muito mais. Aguardem e confiem.

linguaggi della devianza

Cês lembram daquela matéria maneira sobre a comunicação no mundo do crime, né. Perdi a aula da semana em que eu estava no Canadá mas a minha mais nova colega, a argelina Karima, do primeiro ano, gravou pra mim. Ainda não ouvi mas a de quarta passada foi ótima, pra variar.

A prof falou das atividades tradicionais da máfia italiana e as “novas tendências de mercado”, em particular roubo de obras de arte. É a atividade mais lucrativa pra máfia, porque obras de arte se valorizam com o tempo. Se for o caso de achado arqueológico contrabandeado, não custa muito e se valoriza PRA CACETE. Além disso são relativamente fáceis de esconder – uma página de um livro antigo ou uma tela pequena cabe num fundo falso de uma mala, uma jóia você bota no bolso ou veste, etc – e é praticamente impossível provar que um objeto antigo é de fulano e não de beltrano. Como as casas de leilões e os museus também não fazem perguntas sobre a proveniência dos objetos, até porque senão não teriam nada nos acervos, a coisa é de uma facilidade impressionante. Lembro que na mostra sobre o Peru que vimos em Ottawa um dos painéis dizia que o segundo produto de exportação do Peru, depois das drogas, são relíquias arqueológicas contrabandeadas. E quando a prof falou que um receptador famoso aqui da zona comprava vasos etruscos inteiros, quebrava-os e vendia-os pouco a pouco, aumentando o preço a cada peça “nova”, me deu um aperto no coração. Comé que alguém tem coragem de quebrar um vaso etrusco, meudeus. Que mundo é esse.

Outras novas atividades mafiosas incluem contrabando de seres humanos (os estrangeiros que pagam pra serem transportados até a Sicília de barco e entrarem no país clandestinamente), tráfico de órgãos, que aparentemente vem crescendo muito, as tais obras de arte, obtenção de licitações com fundos da Comunidade Européia, venda de medicamentos falsos/adulterados, entre outras coisas.

A segunda parte da aula foi sobre serial killers. Eu desconfio que ela só botou isso no programa pra chamar a atenção da galera, porque foi uma coisa meio superficial, mas eu achei interessantíssimo assim mesmo. Se bem que pra mim basta não ter nenhum número nem fórmula matemática que eu acho o cúmulo do interessante…

primo maggio

Todo ano é a mesma coisa e todo ano eu me repito. Primeiro de maio aqui é coisa séria, e os empregadores pagam o almoço pros funcionários. Ano passado comemos no Giovanni, lá na casa do cacete, mas esse ano resolvemos ficar em S. Maria mesmo. O evento foi na Trattoria da Elide, de um amigo do Mirco, que também é um hotel e é pra onde eu mando todo mundo que vem passear por essas bandas. O hotel é uma gracinha e a comida do restaurante é ótima.

Menu:
– antipasto della casa, com presunto, capocollo, salame, omelete de alcachofra, folheado de lingüiça, champignon em conserva, crostini (pão torrado com pastinhas em cima: patê de fígado de galinha, creme de cogumelos, maionese de legumes).
– risoto de cogumelos porcini e aspargos
– pappardelle (aquele talharim extralargo que eu AMO) com molho de javali
– enrolado de filé de porco no forno com massa folhada em volta e batatas assadas com alecrim
– tiramisù bom pra burro, parecia feito pela Arianna.

Do antipasto não comi quase nada porque se é pra engordar prefiro que seja com macarrão. O resto tava todo ótimo. Acabamos de comer às quatro da tarde e voltamos pra casa correndo porque eu tinha um trabalho pra entregar e o Mirco, que trabalhou a manhã toda, queria dormir. O Gianni ligou convidando pra jantar na casa deles, e lá fomos nós. Não consegui comer nada, ainda empanturrada do maldito almoço; acabei só provando uma garfada do risoto de cogumelo e experimentei um Gran Soleil de baunilha, versão beta que a irmã do Gianni mandou pelo correio pra ele testar.

Ficamos vendo Anno Zero, um programa de debate em que ficam-se sabendo coisas horripilantes sobre a administração desse país, e quando acabou aquela depressão toda voltamos pra casa, morrendo de sono.

Cheguei com o, digamos, sistema digestório fazendo uma revolução na minha barriga. A gente se desacostuma a comer feito um pedreiro, e aí quando tem recaída passa a noite plantada no vaso feito uma rosa. Saco.

meus sais

Que o Daniele só fala besteira eu já tava careca de saber, mas hoje ele realmente se superou. Eu achava que já tinha ouvido de tudo, já que ele uma vez afirmou que tinha uma manjedoura na loja (ele vende móveis antigos e não) que era da época de jesus cristo, e em outra ocasião disse que no subsolo da loja tem uma tumba etrusca.

Hoje ele disse que a Mona Lisa que está lá no Louvre é uma de seis cópias, e que o original está nas mãos de um amigo dele. Que a comprou de uma família de Perugia, cujo antepassado a roubou não sei de onde.

Por sorte eu estava com a boca cheia de pizza (vá em Il Piacere della Pizza, página 2, Teddy Boy) e engoli meu comentário sarcástico junto com a mozzarella, a lingüiça e o alecrim.

puttanissima della madonna, porca vacca, dio sbudellato, porca miseria, e che cazzo, ma vaffanculo

Meus queridos, Berlusconi ganhou. De novo. E ganhou com uma margem eLorme sobre a esquerda. O que confirma a máxima de que cada país tem o governo bunda que merece. O que já estava o fim do mundo vai piorar umas dez vezes com esse canalha mafioso escroto filho da puta ladrão falso grandíssimo filho da mãe no poder pela milésima vez.

A esquerda radical ficou totalmente fora do governo, sem nenhuma cadeira no Parlamento (ou no Senado, não sei, o sistema político aqui é enlouquecedor de tão confuso), o que é bom em termos absolutos, porque todo radicalismo é idiota, mas quando analisado no grande esquema é terrível, porque a extrema direita do Cavaliere fica sem ninguém que tenha os colhões de encará-la.

A vitória do mafiosão me deixou muito, muito irritada e nervosa. O governo anterior não fez nada do que prometeu mas pelo menos fez uma faxina gigante nas contas do governo, e não inventou nenhuma lei pra salvar o próprio rabo, coisa que o Berlusca sempre faz a cada vez que sobe ao poder.

Deu pra perceber que meu humor não está dos melhores, né.

www.votaprovenzano.org

A aula de Linguaggi della Devianza hoje não foi aula. Assistimos a um semidocumentário rodado antes que prendessem o Bernardo Provenzano, aquele chefão da máfia que ficou foragido por 43 anos até ser “capturado” logo depois das eleições de 2006.

A idéia do documentário, que saiu da cabeça de um palermitano, foi sensacional: criar uma falsa campanha eleitoral com o Provenzano candidato a primeiro-ministro, com direito a site, santinhos e carro com alto-falante. Levaram esse carro, com aquele outdoor gigante em cima, com a cara do foragido (na época não se sabia que aspecto ele tinha, não depois de tanto tempo fugido, logicamente; usava-se um retrato falado que depois viu-se que era incrivelmente parecido com o cara mesmo) sorridente, a Palermo, Nápolis e Turim. E filmaram as reações das pessoas.

Foi uma coisa divertidíssima.

Em Palermo chamaram logo a polícia e a “campanha” foi interrompida, e o diretor foi forçado a cobrir a cara do Provenzano com um lençol. As pessoas reclamavam, diziam que aquilo piorava a imagem da Sicília, que com certas coisas não se brinca. Têm razão, e só sabe disso quem passou a vida numa cidade como Palermo, que por anos a fio via atentados de todos os tipos rolando em plena luz do dia, gente justiciada, gente dissolvida em ácido, gente jogada em tanques de cimento.

Em Nápolis também chamaram a polícia e interromperam a campanha, mas a coisa foi mais séria ainda: o político local que mais se rebelou e que chamou a polícia e exigiu que parassem com aquilo tudo era candidato nas eleições daquele ano… pelo partido de um senador que foi condenado por associação mafiosa. E que fazia parte da comissão nacional anti-máfia. O detalhe é que a notícia dessa condenação não saiu em NENHUM jornal nem televisão. Nunca vou me cansar de dizer o quanto a Itália é um país divertido.

Em Turim, onde, como em todo o norte, pensa-se que a máfia é uma coisa daqueles delinqüentes lá do sul, todo mundo achou tudo engraçadíssimo, o carro deu mil voltas na cidade, neguinho comentava que tanto fazia o Provenzano como outros políticos ladrões, foi tudo muito light.

Os comentários que neguinho deixou na internet foram terrificantes: muita, muita gente mesmo chamando o diretor e os produtores do documentário de comunistas, quando todo mundo sabe que a máfia é muito democrática e compra políticos de todas as facções, muita gente dizendo que pelo menos os mafiosos têm honra (col cazzo!), e coisas desse tipo.

Uma parte do documentário entrevistou uma professora universitária cuja tese de mestrado foi o mercado de músicas mafiosas. Isso mesmo que você ouviu. Rings a bell, doesn’t it, pra quem mora no Rio e já prestou atenção às letras de certos funks. CDs vendidos nas lojas, com o nome da máfia local na capa e tudo, na maior naturalidade. As letras são sempre singelas, tipo “aos traidores a gente corta o peito no meio”. De arrepiar os cabelos.

E a reportagem que foi ao ar em vários canais italianos quando “acharam” e “prenderam” o chefão? A ênfase foi toda dada ao coitado do boss que dormia numa casa caindo aos pedaços cedida por um pastor de ovelhas, a como ele dormia numa cama desconfortável, comia ricota e chicória e queijo com mel (juro), ao fato de que as benditas ovelhas foram dadas a uma família da mesma cidadezinha depois que o pastor foi preso. De como foi possível que esse homem não tivesse sido encontrado mesmo tendo colocado os pés fora da Sicília somente uma vez, não se falou. De como a notícia da sua prisão foi dada DEZ MINUTOS depois de anunciada a vitória da esquerda (e portanto a prisão foi feita durante o governo da direita), não se comentou. Do fato de que estranhamente começaram a morrer membros do sexo masculino da família Lo Piccolo, não se disse nada, ainda que se soubesse que os dois candidatos a sucessor do Provenzano fossem um rapaz Lo Piccolo e um Denaro – logicamente, da família Denaro não morreu ninguém. Do tal SE-NA-DOR condenado por envolvimento com a máfia, nem sinal.

Vir pra Itália é quase como nunca sair do Brasil…

linguaggi della devianza

Esse é o nome da matéria opcional que estou fazendo esse ano (além de Diritti Umani, que só começa na metade de abril). Traduzido pro português seria algo como “linguagens dos comportamentos desviantes”. Devianza no lugar de crimine ou reato, porque nem todo comportamento considerado oficialmente fora da lei é visto como fora da norma pelas pessoas (exemplo clássico: baixar música ou filme pela internet), e nem todo comportamento considerado fora da norma é crime (e aqui os exemplos infelizmente são muitos. Eu pessoalmente transformaria em crime grave estacionar ocupando mais de uma vaga, but that’s just me). Devianza é mais abrangente, e ecco a explicação do nome da matéria. É opcional mas é badaladíssima e todo mundo faz; normalmente no primeiro ano, de forma que só eu e uma polonesa da minha turma estamos lá infiltradas no meio dos calouros.

O curso foi inventado na minha faculdade. Nem poderia ser de outra forma, visto que a subcultura da máfia é uma coisa interessantíssima e enraizada na Itália de uma maneira impressionante. A professora é uma gordinha engraçada com um sotaque toscano fortíssimo, ex-juíza, revoltada e sacana, que usa uns colares enormes que eu adoro por cima de roupas horrorosas.

Começamos falando do conceito de devianza, mais ou menos isso que eu expliquei ali em cima, e depois pra descrições breves das mil disciplinas que fazem parte da criminologia: criminalística, antropologia física e cultural, vitimologia, entre outras muitas. Como foi a primeira aula tudo pareceu meio teórico, mas os comentários farpadíssimos da prof apimentam qualquer assunto, e me diverti muito. Tenho a impressão de que vai ser o melhor curso do ano. E vou contando as novidades pra vocês porque acho que esse tipo de assunto é sempre muito interessante. E quem não gostar que feche o seu Thunderbird.

da série “perché l’Italia mi ha proprio rotto i coglioni”

Domingo passado o napolitano do andar térreo veio bater aqui na porta. Antes de bater aqui tocou na vizinha, a Mulher Mais Feia do Mundo, que é toda amiguinha e o convidou pra entrar. Como eu estava de pijama (era quase hora do almoço mas eu estava estudando há horas na minha poltrona Poang, com preguiça de trocar de roupa), fiquei quietinha e não abri. Mais tarde, na garagem, a caminho da Arianna, encontramos com ele. Tinha tocado pra perguntar se queríamos contribuir com uns eurinhos pra comprar velas antivento pra procissão do dia 15. Mirco falou que não, que éramos non credenti. O velho fez uma cara de quem não acha que isso seja compatível com a vida, mas não fez nenhum comentário.

No mesmo dia, à tarde, apareceu no quadro de avisos da portaria um papel explicando que a procissão passaria dia 15, pedindo pra que as pessoas interessadas em contribuir colocassem seu nome na lista logo abaixo, e principalmente pra que não se estacionasse na rua pra não atrapalhar. Não resisti; pesquei uma caneta da bolsa e escrevi: “É mais civilizado deixar a rua livre o ano todo, e não só quando passa a procissão, né?”. Mais tarde, a resposta: alguém escreveu “Essa pessoa que deixa esses comentários deveria ir morar sozinha no alto de uma montanha, né?”. Demos uma gargalhada quando vimos, mas quando caiu a ficha bateu uma tristeza. Porque o ditado “os incomodados que se mudem” é a coisa mais injusta e irritante desse mundo. Tem um estacionamento eLorme a quinze metros aqui do prédio, mas neguinho estaciona em frente à entrada, praticamente em frente à garagem, em cima da faixa de pedestres, ocupando duas vagas (ao longo da calçada oposta ao prédio tem vagas marcadas no chão, mas são poucas). Tudo bem que aqui não tem movimento nenhum, mas TEM UM ESTACIONAMENTO ALI DO LADO, hombre! Por que não fazer as coisas direito, até pra dar um exemplo legal pros seus filhos? Puta que pariu! Vai gostar de fazer coisa errada lá em Nápolis! Além disso deixam a porta do prédio aberta, jogam papel de bala e guimba de cigarro nas escadas, falam berrando, andam de salto alto dentro de casa… Quer dizer, eu que sou civilizadinha é que sou convidada a me retirar, sacaram?

Isso já aconteceu comigo n vezes aqui. Há alguns meses fui levar um DVD pra devolver, de bicicleta, e vi que depois da passagem de nível o trânsito tava todo parado. Desci da bici e fui empurrando pra ver o que era: simplesmente um cretino tinha parado o carro ao longo da calçada, sem seta nem nada, bem no ponto em que tinha um caminhão carregando entulho no outro lado da rua. Ninguém passava! Fiquei parada, abobalhada, até que o dono do carro voltou de sei lá onde é que ele tinha ido. Viu a minha cara de tsk tsk tsk e ficou puto: “tá olhando o quê? O quê que você queria que eu fizesse?” Incrédula, ainda tive forças pra dizer que o engarrafamento que ele estava causando já tava chegando lá na padaria Mela – a essa altura tinha gente buzinando por todos os lados – e que bastava ele esperar dois minutos no estacionamento em frente à farmácia, EXATAMENTE DO OUTRO LADO DA RUA, que logo alguém liberaria uma vaga e ele poderia estacionar. Depois dos primeiros xingamentos do cara eu desisti. Não tem como discutir com selvagens.

O retrato do italiano médio é exatamente esse. É o cara que pára o carro no meio da rua pra mulher ir comprar cigarro no bar, não dá seta nem nada, e quando alguém que vem atrás buzina, bota a mãozinha pra fora à moda siciliana e diz, com o cigarro pendendo dos beiços e oculões Dolce e Gabbana cobrindo todos os seios da face, “ma che cazzo vuoi?”.

Esse país anda me dando nos nervos ultimamente.

a semana

Essa semana foi meio bombástica.

Começou com a chegada da Newlands no domingo. O tempo estava uma verdadeira caca e com a neblina não se via absolutamente nada. O vôo dela de Londres foi então desviado pra Roma, de onde ela veio de ônibus.

Não preciso nem dizer que a semana foi ó-te-ma, rimos muito, dormimos, lemos, fofocamos, não fizemos nada, fizemos turismo, fizemos compras (ela comprou uma jaqueta linda. Linda. Hohoho), ela tirou fotos, apertamos o Legolas. Foi absolutamente lindo poder tirar essa semana de férias sem ter que pedir a chefe. Simplesmente comuniquei aos meus clientes que eu não estaria disponível pra trabalhar durante esses dias. Eu tenho realmente a melhor profissão do mundo.

*

A outra notícia bombástica foi o suicídio do Roberto, um amigo do Mirco. A gente não via o Roberto desde o casamento dele, no ano passado (ou retrasado, já não lembro), e no funeral o Mirco ficou sabendo que ele andava supersumido do circuito barzinho-restaurantes da zona.

A história dele é a seguinte: o pai começou do nada e fundou uma empresa que produz pré-fabricados, ao ponto que praticamente todas as empresas aqui da zona funcionam em galpões que eles fizeram. Têm filiais em Roma, Milão e em outro lugar que não lembro. Abriram uma subsidiária que constrói casas e apartamentos. Têm quase mil funcionários. Patrocinaram a Eurochocolate há dois anos e patrocinam vários eventos locais. Tipo assim, você tá rodando em uma estrada qualquer na Itália e passa por baixo de um viaduto e vê o nome da empresa no bloco de concreto, sabe, porque foram eles que construíram. Estamos falando de MUITO dinheiro. Pois bem, ele é o único filho homem, e como o pai é um daqueles patriarcas à moda antiga, control freak total, proibiu terminantemente as duas filhas de sequer botarem os pezinhos na empresa, e o Roberto foi meio que assumindo a coisa conforme o pai ia envelhecendo. Estudou Economia e Commercio, morou em San Diego pra aprender inglês, viajava pra caramba, dava altas festas na colina da família perto de Assis (eles têm uma propriedade ali que ocupa uma colina inteira; foi onde ele se casou, aliás), conhecia a cidade inteira, fazia mergulho no Mar Morto, rodava centenas de quilômetros de bicicleta com o Moreno, colecionava CDs de jazz, lia bastante, desenhava muito bem.

Era um cara legal. Nos últimos tempos a gente andava com uma certa implicância porque ele só ligava quando precisava de um favor – ajuda do Mirco pra programar a lua-de-mel na Austrália, deixar o conversível no forno da oficina pra secar depois que passou a noite no gramado de casa e os sprinklers molharam tudo, pedir uma ferramenta particular pra um conserto especial. Mas não era má pessoa. Foi um dos primeiros amigos do Mirco que eu conheci, e o único que foi morar sozinho – e logicamente o mais interessante. Conheci várias namoradas dele, inclusive uma de Foligno que era a minha preferida e que eu torci pra que fosse a mulher da vida dele pra eu finalmente ter uma amiga decente aqui no interior do Cambodja. Ele acabou casando com uma psicóloga chatinha que ele já tinha namorado muitos anos atrás, mas a coisa terminou quando ela foi estudar no norte. Ele sempre foi apaixonadíssimo e correu atrás dela por anos a fio, até que ela voltou aqui pra roça e eles voltaram, e finalmente se casaram.

O lance foi que o negócio todo foi premeditadíssimo. O Moreno tava trabalhando na segunda, e duas horas antes da hora da morte o ônibus que ele estava dirigindo foi fechado pelo carro do Roberto, que ia a mil por hora em pleno centro da cidade, quase causando um acidente. O Moreno buzinou, o Roberto olhou mas não viu, e saiu voando. Depois ficamos sabendo que ele tinha preparado tudo de modo que todo mundo o deixasse em paz pra fazer o que ele tinha que fazer: inventou um almoço de negócios que nunca existiu, esperou um momento em que se liberasse uma das casas da família (a mãe, divorciada, estava no Brasil e a irmã maluca, que bebeu e deu vexame no casamento, estava abrindo um restaurante na Índia), foi pra lá sozinho e se enforcou. Não deixou bilhete, testamento, carta, recado, email, blog, diário, nada.

O detalhe mais horripilante é que a mulher dele está grávida de seis meses.

Então tipo assim: ele estava se tratando pro que eles aqui chamam de “esaurimento nervoso”, a.k.a. estresse agudo, mas ninguém sabe direito o porquê da coisa. Talvez porque o pai é um pentelho que nunca se contenta com nada, que é a hipótese mais provável. Já começam a circular histórias de que ele foi diagnosticado com um tumor no cérebro, outros dizem que era esclerose múltipla. Eu particularmente não acredito em nada disso, e acho que ele simplesmente cansou de tudo mesmo, e que a família agora aparece com esses problemas de saúde porque suicídio ainda é uma coisa feia que deve ser justificada sempre que possível. Mas não posso dizer com certeza. O que a gente fica chocado é que nem o amor pelo filho e pela mulher foram suficientes pra fazê-lo mudar de idéia, então não dá nem pra imaginar o nível da angústia que ele tava carregando no peito. E apesar do estresse ele foi visto no domingo anterior, na festa de S. Antonio, se pavoneando pela praça contando pra todo mundo que estava pra virar pai. O Peppe, outro amigo do Mirco (também casado com uma chata de galochas que também está grávida), cruzou com ele no consultório do obstetra e achou que ele parecia superfeliz. O Moreno, que também está se mudando, foi à loja de móveis verificar os últimos detalhes da cozinha e o cara que o atende disse que os móveis pra casa nova do Roberto estavam todos prontos, só esperando ele mandar entregar e montar.

Bom, ninguém nunca vai saber o que aconteceu de verdade.

Mirco disse que o funeral, que foi na basílica de Santa Maria, literalmente parou a cidade. Tipo o Rio no dia do show do U2 no Riocentro, lembram. A igreja entupida, uma muvuca de gente lá fora, trânsito parado. A mulher dele completamente zumbi, o pai impassível.

Eu sou solidária com suicidas. Entendo o gesto, e acho que todo mundo já passou por situações em que seria tão mais fácil acabar com tudo logo de uma vez e foda-se o mundo que eu não me chamo Raimundo. O problema é que uma grandíssima sacanagem com quem fica; é o gesto mais egoísta que existe. Já pensou essa criança (que eu nem sei se é menino ou menina) quando crescer? Já vejo o garotinho ou a garotinha, a cara do pai, perguntando pra mãe, mas o papai se matou mesmo sabendo que você estava grávida de mim? Será que ele não gostava de mim o suficiente? Não consigo imaginar uma situação mais barra-pesada.

O Mirco, que é um resolvedor de problemas nato, anda de péssimo humor, como sempre acontece quando se depara com um problema sem solução. Mais ou menos como quando eu tenho crise de enxaqueca: não existindo nada que ele possa fazer pra me ajudar, ele fica puto. Está intragável. Hoje temos jantar gay aqui em casa e espero que ele dê uma alegrada. Mas eu também não paro de pensar na coisa, ainda que ele não fosse meu amigo íntimo. É um evento muito, muito drástico.

*

No mesmo dia do suicídio, à noitinha, nasceu a Giorgia, filha do floricultor com a siciliana. O floricultor em questão fazia parte do grupo de amigos que foi à Austrália com o Mirco em 99 – o Roberto também.

*

E anteontem o governo caiu. É uma coisa freqüente. Eu lembro que quando estava estudando italiano o nosso professor um dia comentou que na Itália toda hora tem eleição, porque os governos não duram. Pra vocês terem uma idéia, o último governo da direita, aquele do mafiosão Berlusca, foi o único que terminou o mandato em não sei quantas décadas (se não me engano foi o único desde a criação da República). Esse mal tinha começado e já se esperava que caísse há muito tempo; com as dissidências internas a coisa ficou impossível. A política italiana é muito parecida com a brasileira: cada um faz o que é bom pra si mesmo e não pros interesses do país, as leis são feitas sob medida pra tirar da reta a bunda dos políticos sujos, tem envolvimento com organizações criminosas, os debates são todos feitos em cima de ofensas pessoais e não em propostas ou diferenças de opinião, e principalmente um político de uma facção é completamente incapaz de aceitar qualquer idéia do outro lado, mesmo que seja uma boa idéia que resolve um problemão do país. Lógico que assim fica difícil. Esse governo, que não fez o que cumpriu mas também não foi de todo ruim e pelo menos não tinha um primeiro-ministro envolvido em OITO processos de associação mafiosa, praticamente passou o mandato inteiro pedindo o chamado “voto de confiança” do Senado. Nem a própria esquerda votava a favor das decisões do governo, então eles recorriam a esse negócio do voto de confiança: você não aprova o que eu tô fazendo, mas pelo menos deixa eu tentar. Tava na cara que não ia durar muito, e acho que resistiu até tempo demais.

O problema agora é decidir se estabelecer um governo “técnico”, que assuma o leme até as próximas eleições, ou partir logo de cara pra novas eleições, sem mudar a lei eleitoral, que é complicada e ridícula e logicamente favorece a direita. Claro que o Berlusconi tá suuuuper em alta, apesar da idade avançada, e não tem a menor intenção de largar o osso. E o perigo dele voltar é grande, muito grande. *inserir a trilha sonora de Jaws*

*

É isso aí, meus queridos.

uhuuuu

Hoje o país amanheceu sacudido por dois acontecimentos ribombantes.

O primeiro foi a prisão da mulher do Ministro da Justiça, que é um notório idiota. A mulher é presidente da região Campania (onde fica Nápolis), e está sendo acusada de, entre outras coisas e junto com outras pessoas, pressionar o presidente do sistema de saúde regional a colocar um tal fulano numa tal posição, onde ele não deveria estar. O ministro se demitiu, graças aos céus, porque é realmente um imbecil, além de ser claramente o Rei dos Favores: eles moram numa cidadezinha perto de Roma numa casa gigante, e praticamente toda a vida da cidade gira ao redor deles. Vimos uma reportagem uma vez mostrando a romaria que é no portão da casa todos os dias de manhã: é gente levando “presentes” uma atrás da outra, o que muito provavelmente indica agradecimento por favores, e todo mundo sabe que num mundo ideal a política, principalmente tratando-se de escalões tão altos, não deveria funcionar assim. Mas eles são uma família muito católica, dizem, e tais demonstrações de afeto só servem pra indicar o quanto eles são legais. Então tá.

A segunda coisa, pra mim muito mais emocionante, é que ontem o Papa, que tinha sido convidado sabe-se lá por quem pra falar numa universidade laica de Roma, foi recebido por uma manifestação contra a sua presença na instituição. O argumento dos manifestantes, muito lógico, era o que raios um líder religioso tem a dizer em uma universidade laica que todo mundo já não saiba, visto que somos bombardeados com notícias sobre ele todos os dias na televisão, e todo mundo sabe o que ele fala, pensa, come, faz, comenta, peida? De frente aos cartazes de “A ciência é laica”, digamos que ele teve um ataque de simancol e voltou pra casa, de onde aliás nunca deveria ter saído.

Pronto! Armou-se a tempestade! A extrema direita acusa a universidade de ser um “lixão ideológico”, de ser desrespeitoso, de queimar o filme da Itália no mundo (como se fosse possível piorar a imagem da Itália no mundo…) porque agora “nós somos o país que não deixa o papa falar”, e por aí vai. Acusa a faculdade de ter impedido o homem de se expressar, quando na verdade ele mesmo resolveu não ir depois que viu as manifestações contra. E, lógico, os pobres católicos começam logo a queixar-se de como são perseguidos, coitados, logo eles, tão tolerantes.

Ontem à noite, em vez de ir dormir cedo porque hoje tenho muito trabalho pra fazer antes de sair de casa pra aula do Lindão Fodão de Relazioni Internazionali, fiquei hipnotizada vendo o programa daquele nojo do Bruno Vespa. Porque convidaram um grande matemático italiano que eu amo, e que é a cortesia e a calma em pessoa, um professor emérito da universidade que rejeitou o papa, um velhinho foférrimo, e um chato de galochas da esquerda radical que fuma feito uma chaminé e pra tudo faz greve de fome, e, como todo bom italiano sem modos, só fala gritando e interrompe todo mundo, mas apesar disso tudo está longe de ser um idiota. Do lado do coitado do papa, um cardeal, que também é reitor de uma PUC de Roma, e um outro político famoso de direita, ex-ministro e tal. O debate foi lindo.

O homem da greve de fome acusa a mídia italiana de falar do papa o tempo todo e de nos enfiar goela abaixo uma propaganda nada velada que tem conseqüências sérias pro país – atualmente anda-se falando, por exemplo, de mudar a lei que aprova o aborto na Itália, porque o Papa cismou de voltar ao tema “quem aborta vai pro inferno”. O cardeal respondeu espetando que a igreja não faz nada pra aparecer na mídia, e que se lhe dão espaço é porque o assunto interessa, e que eles não precisam fazer greve de fome pra aparecer na televisão. Ainda: afirmou, idioticamente, que não é verdade que a ciência é laica, porque ele também faz ciência como todo mundo. Quer dizer, botou no mesmo patamar teólogos, físicos, biólogos, matemáticos, sacam. Esqueceu de dizer que a “ciência” da igreja não trabalha com evidências mas sim com dogmas, e logo não é ciência. Simples assim.

O matemático replicou, com muita educação, que o papa realmente não tem nada que ir a uma faculdade simplesmente porque o pensamento religioso e o pensamento científico são incompatíveis por definição, e que não deveria nem ter aceitado o raio do convite. Adicionou que o atual papa é um cara polêmico e gosta de comprar briga, vide a sua declaração da semana passada de que a matemática é a prova de que deus existe. E contou, a título de curiosidade, que uma vez, recebendo um grupo de matemáticos pra um congresso internacional (o grupo incluía alguns Nobel winners) que tinham interesse em conhecer o papa, pediu, através desse mesmo cardeal que estava no mesmo programa, um encontro com o alemão. O pedido lhe foi negado. Hohoho.

Aí, quando o programa já tava terminando, os créditos rolando, o homem da greve de fome, que é um grandíssimo filho da mãe, soltou a seguinte pérola:

– Espero que o senhor se envergonhe pelo que disse antes. Se a televisão italiana desse aos laicos e à esquerda o mesmo espaço que dá à igreja católica, nós não precisaríamos fazer greve de fome. É muito fácil pro senhor falar uma coisa dessas, assim, com todo esse ouro *sendo cardeal, a corrente de ouro que pendia do pescoço do homem era tão grossa quanto uma corrente de bicicleta, pra não falar da cruz gigante e do anel imenso, tudo logicamente de ouro maciço*, vocês e a sua igreja cheia de simonias.

Cai o pano. O cardeal ficou verde de ódio, mas a música de abertura já tava tocando e não dava mais tempo de responder. Lindo.

Eu não escutava a palavra simonia desde as aulas de história na escola, e nunca, em todos esses anos de Itália, ouvi ninguém enfrentar tão descaradamente a igreja católica, ainda por cima no programa com maior ibope na sua faixa horária, e que é ridiculamente de direita, conservador e cristão. Faltou só apontar o dedo pro nariz do cardeal e chamar de feio e bobo. Ficamos, eu e Mirco, completamente abobalhados. A-do-rei.

Não preciso nem dizer que hoje vou sair de casa com a minha camiseta da RDFRS.