Várias pessoas me recomendaram esse livro, nem lembro mais de todas, então agradeço coletivamente. O livro é muito legal, escrito de um jeito muito diferente. Altamente recomendado. Ah, é do Daniel Galera.
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Velho, tu tá obcecado com essa história de renascimento. Vira o disco. Por que é tão importante pra ti saber se existe renascimento?
É importante saber que não existe. Todo o resto parece certo pra mim, mas esse detalhe estraga tudo.
Escuta, nadador. A questão do renascimento nem é muito importante no budismo original. Rolavam altas macumbas no Tibete quando o budismo caiu lá de paraquedas e uma parte da doideira ficou. Mas não é como a reencarnação kardecista. Se tu entende que uma pessoa é só uma aglomeração dinâmica de estados mentais, a ideia de uma alma que pode reencarnar deixa de fazer sentido. O que renasce, arredondando de um jeito grosseiro pra tu entender, são esses estados mentais, que seguem em frente e se recombinam até certo ponto. Assim como teu corpo alimenta plantas e vermes se tu for enterrado no chão. Assim como os átomos do teu corpo são poeira de estrelas.
Os átomos do meu corpo podem ser poeira de estrelas, mas isso não quer dizer que há estrelas em mim.
Parem de falar como hippies.
Entendeu o que eu quero dizer, Bonobo? A estrela morreu, eu vou morrer. Não faz diferença. Os átomos não eram dela. Meus estados mentais não são meus. E que porra é essa de mente? Acho que é só um jeito espertinho de acreditar em alma. É o restinho da permanência que os budistas guardam embaixo da cama.
Criamos um monstro, Bife.
Eu avisei antes. O ideal é nem começar.
A vida não pode continuar depois da morte. Não pode. Seria ridículo. Se provarem que continua eu me mato.
Mas aí não ia adiantar.
Tu é uma peça mesmo. O desgraçado mais cético que eu já vi.
Não sou cético. Só não acredito em qualquer coisa.
Se Deus existisse ele ia se divertir contigo.
Leopoldo ergue a garrafa de vidro e soluça.
Um brinde à crença apaixonada de que nada disso aí existe.
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Mas minha parte preferida foi a que me fez ter um ataque de riso na escola de dança da Carol. É meio longuinho mas vale a pena.
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(…) Beta começa a latir para o Bonobo. Depois de uma dúzia de latidos ela para com a mesma falta de motivo com que havia começado, lambe os dentes, olha em volta como se também estivesse positivamente surpresa consigo mesma e senta no tapete. O Bonobo diz que ela está feliz. Ele também acha. Estão enrolando as palavras e desistindo de frases no meio do caminho. Escuta com clareza o que pretende dizer dentro da cabeça mas a boca deforma as palavras na hora de enunciá-las. Por um longo período ficam em silêncio, deixam a cachaça de lado, apenas olham o mar escuro e a praia iluminada e escutam a trilha sonora épica e os efeitos sonoros violentos do jogo eletrônico no quarto ao lado. Tem a sensação de que esse instante se prolongará indefinidamente, que nada mais acontecerá, como se o mundo tivesse atingido alguma espécie de estado final na cena insignificante que estão protagonizando. O Bonobo pergunta com a voz baixa e circunspecta se ele também está sentindo aquilo. Ele pergunta aquilo o quê. Não tá sentindo nada diferente mesmo?, o Bonobo insiste com o indicador esticado como uma antena e o olhar oblíquo de quem está atento a algum fenômeno muito sutil. Ele presta atenção mas não capta nada além do rumor das ondas, a palpitação de suas têmporas, o espaço girando sob o efeito da bebida. E de repente ele sente. O fedor mais horrendo que já sentiu na vida, uma pestilência quase pastosa de metano concentrado que o faz engasgar no meio da tentativa de gritar um palavrão. O Bonobo gargalha, desmonta da janela com um salto mortal incompleto, bebe um gole da cachaça e faz uma dancinha com a garrafa na mão berrando Peido radioativo rapaziada, vambora! A vida é uma life e a night é uma baby! Ele foge para o banheiro, mija e depois lava o rosto tentando se recuperar do efeito do gás nauseabundo.
Tu tá podre por dentro, Bonobo.
Eu tô é pronto. Vamo pra festa.
Ele ri até perceber que o Bonobo tá falando sério.
Tem uma festinha no Rosa que deve tá começando a ficar animada agora mesmo. Fechamento de temporada de um sushi bar que fica ali perto da pousada. Vamos voltar pro quiosque e pegar o meu carro.
Tu tem carro?
Tenho. Bora. Chama o Altair ali.
Descobrem que Altair desmaiou com o controle do video game nas mãos. Está meio sentado e meio deitado entre a parede e o piso de azulejos castanhos com o jogo travado na tela de Continue?. Tentam acordá-lo sem sucesso. Derramam um copo d’água na sua cabeça. O Bonobo dá uns tapas no seu rosto. Altair não dá sinal nenhum de que possa despertar. Decidem deixá-lo no apartamento, deitado de lado em cima do tapete do quarto, com a chave reserva bem à vista na mesa da sala. Troca de camiseta e tranca as persianas enquanto o Bonobo tenta contatar pessoas no celular. Tem umas amigas minhas que iam pra lá, diz. As amigas não atendem. Outro conhecido atende e diz que o pessoal tá chegando. Tá começando a esquentar. Ele deixa Beta sair e tranca a porta por fora. Andam a passos largos pela trilha e depois pela areia. Dessa vez as gaivotas em repouso saem correndo em direção à água e algumas levantam voo. O Bonobo olha por cima do ombro.
Tu viu que a tua cachorra saiu junto? Ela tá nos seguindo.
Nem fudendo eu ia deixar ela trancada lá com o Altair.
Já passa da meia-noite e a cidade está vazia. Caminham por cima da faixa central da avenida até a esquina do quiosque de Altair. O Bonobo entra no terreno chutando as latinhas vazias e dando pulinhos.
O que tu foi fazer aí, ô sequelado? Cadê teu carro?
O Bonobo se aproxima da carcaça do Fusca e começa a forçar a maçaneta.
Não é possível.
Quê?
Isso é o teu carro?
Sim. É o Tétano.
Esse troço anda? Achei que era ferro-velho.
Anda pra caralho. Só toma cuidado quando entrar.
O Bonobo consegue abrir a porta do motorista e se acomoda no banco. Ele dá a volta no Fusca e fica espremido entre o carro e o muro tentando abrir a porta do lado do passageiro. A maçaneta corroída precisa ser pressionada de um jeito bem certinho para acionar o mecanismo. A lataria está coberta de padrões fractais de ferrugem e tinta bege descascada. Do teto se projetam as duas forquilhas enormes de um suporte de bagagem capaz de acomodar um barco pequeno. Há furos e arestas pontiagudas por toda parte. Os pneus estão tortos, carecas e meio vazios. Entra com cuidado, tentando não se cortar. Do assento do banco do passageiro resta apenas uma armação de hastes de ferro maleáveis coberta por almofadas velhas e um papelão dobrado. O encosto de espuma mole está relativamente intacto. Em cima do painel há uma estatueta dourada de um buda sentado com um sorrisinho no canto da boca e lóbulos da orelha hipertrofiados caindo sobre os ombros. Assobia para Beta. A cachorra contorna o carro e sobe no colo dele com um salto. Ele a afaga, elogia sua disposição e a acomoda no banco traseiro, que está coberto por uma canga de praia do Grêmio. Vê a bateria acomodada atrás do banco do motorista no meio de um emaranhado barroco de fios elétricos. O Bonobo gira a chave na ignição. O motor do Fusca dá uma risada.
Demora um pouco pra pegar, mas depois que pega não apaga.
Na quarta tentativa o motor pega. O Bonobo acelera fundo e produz um ronco escandaloso até obter um par de explosões no escapamento.
Pega o meu tapa-olho ali no porta-luvas por favor.
Meu o quê.
Meu tapa-olho.
Abre o porta-luvas e encontra um tapa-olho feito de pano e elástico preto no meio de uma barafunda de lenços de papel usados, cartões, barras de parafina, camisinhas, uma estopa encardida, uns óculos de sol quebrados. O Bonobo pega o tapa-olho e o ajusta em volta da cabeça e em cima do olho direito.
É pra não enxergar duplo.
Somente então ele engata a primeira. O carro anda. O capim e os destroços do quiosque raspam no fundo. A sensação é de estar viajando dentro do próprio motor. Saem de Garopaba pela estrada estadual. Um carro cruza no sentido oposto e o asfalto iluminado surge sob seus pés através de um buraco no piso. O Bonobo ziguezagueia levemente na pista mas levando em conta seu estágio de embriaguez e o estado do veículo ele até que dirige de maneira reconfortante, compenetrado, em velocidade moderada, com a vista limitada pelo absurdo tapa-olho e debruçado sobre o pequeno volante de forma a quase encostar o nariz simiesco no para-brisa. Criaturas como uma vaca ou um ciclista ganham vida num clarão e voltam a ser assombrações quase no mesmo instante. Entram à esquerda no acesso da praia do Rosa. É necessário parar o Fusca quase totalmente para transpor os quebra-molas. O calçamento plano de lajotas dá lugar às ladeiras de chão batido. A embreagem do Fusca não retorna sozinha à posição normal depois de acionada. Para lidar com o problema o Bonobo amarrou um pedaço de corda de varal azul ao pedal e ao puxador da porta. A operação de tirar a mão esquerda do volante e puxar a corda no momento exato após cada troca de marcha é complicada e exige um tanto de ginga e sincronia. Nas manobras mais complexas o motorista lembra um titereiro controlando o boneco de um automóvel.