a short story

Ontem foi dia de São Feliciano, padroeiro de Foligno. A cidade inteira pára, mas nós trabalhamos. Sempre. Pra mim tá ótimo, porque por lei dia de festa oficial é como Natal, paga mesmo se não se trabalha, então todas as 11 horas de trabalho de ontem serão pagas como extra. Mas o tempo estava horrível e era um daqueles dias em que não dá vontade de fazer nada que não seja mofar debaixo das cobertas. Todo mundo puto da vida com a chefa, logicamente.

Aí na terça, no final da tarde, muitas horas antes da tempestade, o server explodiu na agência, e acabou a luz. Na escola, que é eletricamente independente, tudo normal, mas o final do expediente na agência foi tumultuado: nada de computador, nada de telefone, nada de luz. Um chefe sensato faz o quê numa situação dessas? Bom, galera, já que nada funciona e não dá pra trabalhar e amanhã em teoria é dia de folga, vamos ficar em casa. Não, Gafanhoto, nada disso. Ontem todo mundo no escritório às oito e meia da manhã. Pra nada. Porque a luz só voltou às onze. Eu fiquei na escola inventando coisas pra fazer e fazendo-as mui-to-len-ta-men-te: fiz uma lista dos (poucos) livros disponíveis pros alunos lerem, atualizei meu horário e a lista das horas extras do mês, em arquivos que salvo sempre no meu desktop, fiz fotocópias, preparei aulas. Depois que a luz voltou fez-se uma reunião rapidinha onde foi dada a seguinte notícia: como o server teria que ficar fora do ar das duas às seis, horário em que vinha a empresa que dá suporte informático à agência, quem normalmente trabalha com o computador naquele horário (todos) foi instruído a voltar pra casa e retornar pra trabalhar das seis às dez da noite.

Tipo assim, nem no manicômio neguinho tem idéias tão mirabolantes. Até porque NINGUÉM mora lá perto e fazer 60 quilômetros a mais por causa de uma imbecil que não respeita os outros é de lascar. Pra mim não fez diferença porque eu tinha aulas marcadas direto, non-stop, das duas às oito e meia da noite, mas o resto do povo estava emitindo fumaça pelas orelhas. A Laura, a nova secretária que é super gente boa e já entendeu como funciona a coisa ali no nosso hospital psiquiátrico, deu seu veredito de quem deveria ter nascido na era de Aquarius:

– Energias negativas demais.

Eu, racional total, diagnostiquei:

– Foi o santo. Infiéis, fiquem em casa! Hoje não se trabalha!

(Passou um flash na minha cabeça nessa hora.
INTERNO – LOUNGE DO ALTO ESCALÃO – PEDRÃO E FELICIANO CONVERSAM

PEDRÃO, COPO DE COGNAC ESQUENTANDO NAS MÃOS: Ninguém tira da minha cabeça que Ele tinha mandado ver numa garrafa de Pitú quando inventou esses humanos. Ô raça! Como custam a entender! Você vê, aquele orelhudo da Casa Branca, comé que se chama. Kyoto não, Kyoto não quero, precisamos mandar não sei quantos furacões e tempestades de gelo pra ficha cair. Já tínhamos perdido as esperanças. Só nos restava o Kraken. Realmente, sutileza não é com eles.

FELICIANO, MASTIGANDO TRIDENT FRUTAS TROPICAIS: Nem me fala. Eu também estou com alguns problemas numa das cidades sob a minha proteção. Em particular uma no interior do Zaire… (PEGA UM PEDAÇO DE PAPEL AMARROTADO NO BOLSO) Não, Itália. O nome é… É pê ou efe? Putz, como a Atenas escreve mal… É efe. Foligno. Pois é. Segurei a onda de frio o máximo que eu pude pra mandar a primeira neve do ano bem no dia da minha festa. De repente assim neguinho entendia que era pra ficar em casa e tirar uma folguinha. Mas não é que teve gente que insistiu?

PEDRÃO: Aposto que foi aquela cretina de cabelo laranja. Aquela que soltou aquela mentirona e jurou no nome da filha, e você fez a garota cair na escola e quebrar o braço dez minutos depois [ESSA PARTE É VERÍDICA, CRIANÇAS].

FELICIANO: Ela mesma. Aquela que só usa Armani mas não tem dentes do pré-molar pra trás. Quando vi que ela ia insistir mesmo, fulminei o server, matei o telefone e deixei a agência dela sem luz.

PEDRÃO: Não me diga que mesmo assim ela fez o povo trabalhar no seu dia!

FELICIANO: Digo. Pena que só consegui segurar a falta de luz até as onze. Mas aí ela inventou de botar o pessoal pra trabalhar até as dez da noite!

PEDRÃO: Não é lá que trabalha aquela garota maluca? Aquela que trabalha tanto que tá com caspa, insônia e enxaqueca ao mesmo tempo?

FELICIANO: Isso. Outra mula. Tá esperando o quê pra sair daquele manicômio? Todo mundo que era normal abandonou o barco.

PEDRÃO: Você mesmo falou que ela tava economizando pra compras os móveis da casa nova…

FELICIANO: Eu sei, mas tudo tem limite nessa vida, né.

PEDRÃO: E você não mandou um raio no SUV da banguela por quê? É grande, não vem dizer que a mira é difícil.

FELICIANO: Ordens da chefia. Eu bem que queria, mas me disseram pra não exagerar.

PEDRÃO (LEVANTANDO E SE ESPREGUIÇANDO): Me avisa se rolar alguma novidade. Tás com fome?

FELICIANO (JOGANDO O CHICLETE NUMA LATA DE LIXO FEITA NA TAILÂNDIA COM FOLHAS DE BANANEIRA TRANÇADAS): Verde. Sabe o que me deu vontade? Um McMenu número 5, aquele com bacon.

PEDRÃO: Só se for com milkshake de ovomaltine do Bob’s.

FELICIANO: Beleza. Chama o Bussunda que essa história de Foligno me deixou meio irritado, tô precisando levantar o astral.

PEDRÃO: Ele não tava de dieta?

FELICIANO: Desistiu.

PEDRÃO: Você se incomoda se eu chamar o Ronald? Estou lendo o Silmarillion mas estou com umas dúvidas…

FELICIANO: Beleza.

(SAEM DO LOUNGE E FECHAM A PORTA ATRÁS DELES).

ego massage ‘cause it’s saturday and i’m having wine after lunch and i’m so, so, so damn tired but the new apartment is almost ready

Durante essas semanas dando aula pras turmas da Christine, além da satisfação nada insignificante de ouvir de TODOS os alunos que querem continuar tendo aulas comigo, também me diverti muito. Não me importo de dar aula pra um aluno só, mas é claro que os grupos são muito mais divertidos. Até porque em sala de aula viram todos crianças, não importa se são médicos, engenheiros, empresários, dondocas, pedreiros, casados e com filhos, e a sala de aula vira uma zona (pra não falar nos cadernos da Barbie e do Hulk do ano passado que os pais reciclam dos filhos). Com a turma maior, de 7 alunos de nível pre-intermediate, resolvi fazer um pacto: vamos resolver os problemas de pronúncia, infindáveis quando se trata de italianos, um de cada vez.

Durante essas semanas nos concentramos em eliminar o som /g/ do gerúndio. Pra eles entenderem o quanto é horrível ouvir “duin-ga” em vez de doing, eu começo a falar com eles em italiano com sotaque inglês, por exemplo dizendo “tchútchou” em vez de “tutto”. Eles ficam horrorizados e começam a se policiar: toda vez que um deles tem que ler uma frase ou fazer um exercício que tem um gerúndio, todo mundo fica olhando fixo pra vítima, aquela tensão no ar, e ai da criatura se ler “uótching-a TV”, porque os outros caem matando. E quando alguém erra eu finjo que fui atingida em um órgão interno qualquer, que escolho ao acaso, dependendo da inspiração do momento. E aí está acontecendo que quando o aluno erra e eu faço uma careta de dor e boto a mão no baço, ele se corrige sozinho e me pede mil desculpas como se realmente o erro tivesse causado uma ruptura esplênica. Ou então os outros perguntam: o que foi agora, o fígado? Não, anta, o fígado fica no outro lado. Eu passo a aula inteira rindo.

Tem outra coisa: vocês sabem que eu tenho olhos de lince, e não estou brincando. Vejo lá do outro lado da longa mesa o que o aluno está escrevendo, e se não consigo efetivamente ver porque tem alguma coisa na frente – uma borracha, uma caneta – pelo movimento da mão dá pra perceber se o fulano botou dois pês em stopping ou não, ou se escreveu aet em vez de eat. Corrijo logo, double p, fulano, e eles ficam me olhando como se eu tivesse uma réplica do Hubble escondida por baixo do quiasma óptico.

Eu GOSTO de escolas. Gosto de aprender e ensinar, quando vejo a cara de “entendi!” de um aluno é quase como se eu estivesse comendo um pedaço de Toblerone. Com alguns dos meus alunos adolescentes estudo literatura inglesa pra escola, e quando me ligam pra dizer que passaram na prova eu fico toda boba. Alguns deles mandam colegas ou parentes pra mim: foi você que estudou Hemingway com o Massimiliano pra prova final? Oui, chérie.

Se eu tivesse filhos seria difícil me controlar pra não ir pra escola junto com eles. Nada na vida me deixa mais feliz do que aprender (e ler, que é sempre aprender) ou ensinar. Nem Toblerone.

musiquinha

O Brunão mandou a batata quente, eu aceito. Aviso que não é emocionante, porque sou bibliófila e não musicófila.

1. Qual o primeiro CD que você lembra de ter comprado na vida? E o último?
O primeiro foi o do Terence Trent D’Arby (não riam), na época em que CD era novidade. Foi minha mãe que comprou, e não eu, pirralha, mas o que eu mesma comprei pessoalmente não lembro nem a pau. O último… Cara, não lembro. Não compro CD há MUITO tempo. Meu pai comprou os dois últimos da Marisa Monte pra mim há pouco tempo, serve?

2. Existe algum artista do qual você tenha a coleção completa de tudo o que ele tenha lançado?
Live. Falta só o último, que como eu só fiquei sabendo que existe agora há pouco, não conta. E Marisa Monte.

3. Existe algum disco, CD ou LP que você gostaria muito de ter e até hoje não conseguiu comprar?
O último da Loreena McKennitt, que o Tuco falou que é ótimo. Vocês sabem, aqui no interior do Zaire esse tipo de coisa é complicada de encontrar.

4. Qual sua lembrança mais interessante de uma música em particular?
Que pergunta difícil… Acho que foi a época em que eu era viciada na Nona e ouvia mil vezes por dia. Apesar de ser o lugar-comum do lugar-comum em termos de música, me arrepia os cabelos até hoje.

5. Alguma música mudou efetivamente sua vida?
Jamé. Música não tem nenhum impacto concreto sobre mim. Livros sim, música não.

Pô, Brunão, agora fiquei com vontade de ouvir os CDs antigos do Live… Merda.

o miguel couto é aqui

Outro bicho que tá pegando é uma notícia que bem podia ser brasileira.

Um repórter danado, que já fingiu ser imigrante pra arrumar emprego colhendo tomate e ganhando uma titica e dormindo em tenda no bosque, entre outras coisas, se enfiou num macacão azul e entrou num hospital como se trabalhasse pra cooperativa que faz os tais “serviços gerais”. Como a falta de pessoal de limpeza e manutenção é gritante, ninguém nem percebeu que ele não trabalhava na empresa: tá de macacão, vai trabalhar. E o que ele viu num dos maiores hospitais de Roma é de arrepiar os cabelos. Os pacientes são transportados pelo subsolo, às vezes, onde, aparentemente, há algumas salas de exames, e a tubação no teto é toda aberta, cheia de lodo, pingando aquela água nojenta em cima de quem passa. Entre outros problemas que eu nem lembro. Sabe o Getúlio? O Souza Aguiar? É mais ou menos aquilo. E aí a coisa desencadeou uma megablitz do Ministério da Saúde pra “apurar irregularidades”, que, logicamente, começaram a pipocar por todos os lados. Não achei fotos, mas também estou com preguiça de procurar.

enquanto isso…

Uma notícia em particular não sai dos jornais e dos telejornais desde o Natal: a morte de uma mulher, seu filho pequeno, sua mãe e uma vizinha de casa, em uma cidade do norte da Itália. A mulher que morreu era casada com um tunisiano, que foi imeditamente suspeitado, até porque vivia entrando e saindo da cadeia por tráfico de drogas. Todas as manchetes só falavam disso. Aí a primeira virada: o cara tinha ido pra Tunísia dez dias antes do assassinato. Todas as manchetes ficaram boazinhas de repente, doidas pra difundir a notícia que o magrebino não era culpado de coisa nenhuma, imagina se somos xenófobos. E finalmente a virada final: os assassinos foram dois vizinhos de casa. Ainda não entendi direito o motivo; aparentemente a família das vítimas fazia barulho, os vizinhos detestavam o tunisiano, entraram e casa e mataram todo mundo. O marido da vizinha morta sobreviveu, e foi ele quem denunciou os dois, que acabaram confessando. Os jornais de hoje dizem que os assassinos não demonstraram nenhum sentimento durante o depoimento. A mãe da assassina disse que ela foi estuprada quando era pequena e que tinha mania de ordem e limpeza.

Nós também temos Charles Manson, galera, tão pensando o quê.

minipotoquinhas

Estou muito, muito cansada. Desde o início do mês, quando peguei as turmas da Christine, estou trabalhando EM MÉDIA onze horas por dia, TO-DOS-OS-DI-AS. Então vocês podem imaginar o meu estado bagaço total. Coluna acabada, punhos doendo, garganga destruída. Pelo menos vou me sentir menos culpada de gastar dinheiro indo ao Rio tendo tanta despesa com a casa nova.

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Essa semana estão terminando de pintar os apartamentos novos. Já botaram o pavimento das escadas e o cimento no chão da entrada principal. A louça dos banheiros já está nos apartamentos, e deve ser instalada essa semana. Confirmamos hoje o pedido da cozinha. Os eletrodomésticos já foram comprados em outro lugar, looooonga história, e estão devidamente armazenados no galpão da loja esperando a cozinha ficar pronta. Vou dormir todas as noites sonhando com a ordem em que vou arrumar os livros na estante.

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As tulipas do ano passado, que replantei esse ano, estão começando a brotar : )

de novo

Quando as Irmãs Legais chegaram pra ter aula, a odiosa C. lhes disse sorridente que Christine havia ligado avisando que volta no final do mês. As duas responderam “mas nós estamos bem assim, obrigada”. Mais tarde uma velha aluna veio me procurar – não reconheceu a Laura, já que ela só conhecia a Simona, e de onde eu estava ouvi meu nome.

Por que é que eu não sou boa em algo que dê dinheiro, ó céus…

: )))))))))

Os contos de fadas, [Tolkien] destacou, eram histórias sobre o Reino Encantado: “O reino ou estado onde as fadas têm sua existência”. Os ouvintes que haviam lido seu ensaio “Beowulf: os monstros e os críticos” poderiam notar uma semelhança com o modo como Tolkien retratou o poema em inglês antigo. Tolkien falara do poeta tornando seu tema “encarnado no mundo da História e da geografia”. Os contos de fadas, disse à platéia em St. Andrews, eram fantasia, permitindo que os ouvintes ou leitores se deslocassem dos detalhes de sua experiência limitada para “inspecionar as profundezas do espaço e do tempo”. Na verdade, o conto de fadas bem-sucedido era “subcriação”, a façanha máxima da fantasia, a arte suprema, derivando seu poder da própria linguagem humana. O autor de sucesso de contos de fadas “faz um mundo secundário em que sua mente pode entrar. Lá dentro, o que ele relata é ‘verdadeiro’: está de acordo com as leis daquele mundo”.

Tolkien e C.S. Lewis, O Dom da Amizade (Colin Duriez).