marseille

Chegamos cedo em Marseille e estava chovendo. Pegamos o ônibus do aeroporto até a Gare Saint-Charles e de lá fomos a pé até o hotel, pedindo informações a cada dois segundos porque ninguém conhecia a tal ruazinha. E vou te contar, a fama de antipáticos dos franceses não condiz: foram todos g-e-n-t-i-l-í-s-s-i-m-o-s comigo, teve hominho saindo da farmácia e me levando até a esquina pra me mostrar o ponto de referência, teve gente desenhando mapinha, teve gente chamando outra gente pra explicar melhor. Na maioria das vezes eu ataco em inglês, mas quando me respondem em francês eu consigo entender razoavelmente, e todo mundo teve o cuidado de falar bem devagar porque notaram a minha monguice galófona.

Finalmente achamos o raio do hotel. Uma birosca, mas todos os hotéis franceses onde já dormimos eram horríveis, então pelo menos que fosse barato. Era. E bem limpo, o que já era alguma coisa, mas o quarto era minúsculo, a falta de bidet é imperdoável e, pior, o microelevador parou de funcionar meia hora depois que chegamos (pelo menos deu pra levar a mala pro quarto…). O pessoal do hotel também foi muito simpático, e depois de pegar um mapinha e trocar os sapatos molhados resolvemos sair pra explorar.

Péssima idéia essa de vir a Marseille, porque a cidade é um imenso canteiro de obras nesse momento. Não há uma calçada intacta e o trânsito é uma loucura. Tenho certeza que vai ficar muito bonita depois das obras, mas por enquanto é absolutamente inviável. Não recomendo. Fora que é muito, muito suja, e cheia de tipos estranhos com cara de marinheiros velhos, desdentados e eternamente bêbados dormindo abraçados a adoráveis vira-latas debaixo das marquises. Muito décadence. Demos uma peruada nas Galleries Lafayette e acabamos indo almoçar na primeira brasserie que nos pareceu simpática. A garçonete também foi um amor e comemos bem: entrecôte com molho de champignon pra todos, acompanhado de batata frita, menos pra mim, que quando descobri que blé é trigo quase morri de felicidade – eu, a rainha dos cereais e leguminosas.

Depois do almoço continuamos dando umas voltas, mas estávamos exaustos. Voltamos pro hotel pra dar uma descansada, e quando saímos de novo, lá pras quatro da tarde, ainda estava chovendo. Chovia, mas nada de particular, só que o temporal desabou de verdade quando estávamos dando uma olhada no Vieux Port. Vocês não têm idéia do que foi essa chuva! Sabe aqueles temporais que inundam a Praça da Bandeira em dez minutos? Nunca tinha sido pega por um chuvaréu assim aqui na Europa. Acompanhado de um vendaval, claro, porque desgraça pouca é bobagem. Ensopadíssimos, os casacos superpesados por causa da água, os pés gelados, fomos catar um salão pro Mirco cortar o cabelo. Porque depois de cortar a juba na Sérvia ele pegou essa mania de cortar sempre quando viaja, e já o fez no Rio, em Rotterdam, em Rouen, e agora em Marseille. Ô lanterneiro internacional! O cabeleireiro era um ruivo gordo, imenso, sorridente, ligeiramente viado, com as unhas manchadas de tintura, todo vestido de preto. Tentei explicar como queríamos o corte, ele fez oui oui e acabou fazendo o que lhe deu na telha. Dançou o tempo todo, fez piada, piscou o olho, trocou insultos amigáveis com a manicure. Acabou que o cabelo saiu curtíssimo, mas agradou.

E dali deu-se início à epopéia dos sapatos da Une (não se escreve assim, mas não consigo decorar como é), que só tinha trazido um par e não podia ficar rodando com os pés nadando em água de chuva. Achamos um par de botas de couro falso bem legais, e depois que a chuva deu uma calmada voltamos pro hotel pra dar mais uma descansada. Fomos jantar no porto, num restaurante de frutos do mar, que obviamente foi uma decepção total. Não adianta, cara, depois que você aprende a comer muito bem pagando relativamente pouco na Itália, quando viaja pro exterior é melhor encarar um Mc. Porcaria por porcaria, pelo menos custa pouco e você não tem grandes expectativas, o que significa nada de desilusões. Muito putos da vida por ter gasto demais e comido malzinho, voltamos pro hotel e capotamos.

pobre tem mais é que morrer

Aconteceu um lance muito chato e idiota e desnecessário no trabalho ontem. A Christine, professora americana, foi testada como tradutora com péssimos resultados. Então foi sumariamete mandada embora da agência e agora só dá aula. Está no mesmo esquema em que eu estava até junho, ou seja, ela aparece lá pra dar umas quatro ou cinco horas, normalmente espalhadas, de modo que fica muito tempo sem fazer nada. Faz a mesma coisa que eu fazia: abre um livro e lê.

Minha chefa maluca sabe que eu me dou bem com a Christine, e sabe que detesto tudo, TUDO o que acontece na agência e na escola, e sabe muito bem que eu a acho completamente maluca. Então eu fui colocada em isolamento. Até a secretária nova, a Laura, uma garota MUITO gente boa, fica o dia inteiro na agência e só desce pra escola no final da tarde, quando eu estou quase sempre dando aula. Isso tudo pra eu não ficar amiga de ninguém, veja bem. Como se isso mudasse alguma coisa. Pois então; ontem depois do almoço estou eu sentada traduzindo uma coisa muito maneira enquanto Christine estava quieta na outra escrivaninha lendo, quando passa a chefa maluca pelas escadas de trás. Pela porta de vidro vi que ela olhou pra nós, mas foda-se, estava trabalhando amarradona, fazendo o que eu tinha que fazer. Dez minutos depois aparece aquela mala sem alça da C. dizendo que a chefa estava se descabelando de raiva no andar de cima porque nos tinha visto conversando e que se eu atrasasse um trabalho por culpa da Christine seria uma coisa muito desagradável – a sua técnica anti-motim é colocar todos contra todos, vocês não têm idéia da trama complexa que ela cria na sua cabeça cada vez que alguém se demite. Então recebemos ordens expressas de jamais ficar na mesma sala enquanto eu estiver trabalhando e Christine não. Tipo assim, creche, sabe. Assim que a C. foi embora a Christine entrou no banheiro, se olhou no espelho, saiu do banheiro, me olhou e disse:

– Nasceu outra espinha na minha testa. É o nojo desse lugar se manifestando dermatologicamente.

Eu PRECISO escrever um best-seller e ficar milionária. Porque depender de maluco é um castigo infinito, cara.

uia

Esqueci de comentar o almoço coreano de domingo.

Há muitos séculos atrás, quando eu ainda perdia tempo no orkut, deixei uma mensagem num thread sobre cozinha coreana em uma comunidade de gastronomia. A minha única experiência com comida coreana até então tinham sido os vizinhos da Hunka, que quando cozinhavam criavam um fedor tão grande que os outros moradores evacuavam o prédio. Meu comentário foi que eu não conhecia a cozinha coreana, mas depois dessa história também não tinha nenhuma vontade de conhecer. Pra quê! Como hoje em dia é proibido não gostar, choveram ofensas de todos os tipos. Diverti-me deveras.

Mas agora falo com conhecimento de causa: ODEIO COMIDA COREANA. ODEIO, ODEIO, ODEIO. Primeiro porque cozinham com óleo de gergelim, que, ao contrário do óleo e do azeite, tem um sabor muito acentuado. Toda a comida fica com gosto de gergelim. Segundo porque é exageradamente picante, e você acaba não sentindo gosto de nada (além do maldito óleo de gergelim, lógico). Terceiro porque há coisas bizarras, tipo o maldito kimchi, do qual eu já tinha ouvido falar através da Lucia Malla. Trata-se de verdura fermentada. FER-MEN-TA-DA. Eu não tomo nem Yakult, imaginem se vou comer acelga fermentada, entupida de alho e ainda por cima picante! Tudo bem que o mundo ocidental também come coisas estranhas, como queijos mofados e embutidos, que são literalmente nojentos, mas deliciosos. Mas verdura fermentada é um pouco demais pra mim. O resultado foi que só não saímos do restaurante direto pro McDonald’s porque estávamos morrendo de sono e loucos pra voltar pra casa e capotar. Experiência que jamais será repetida, juro.

Roma, aquela

Acordamos às duas da manhã pra levar Moreno e Marta pro aeroporto. Vão a New York. Daniele foi com a gente porque a Une estava em Roma visitando o irmão, assim aproveitaríamos pra dar uma carona de volta pra ela. E ainda por cima Daniele queria ir ao mercado de rua, o Porta Portese, pra catar antigüidades pra loja.

Chegamos em Roma às quatro da manhã, e miraculosamente conseguimos achar o Porta Portese sem grandes problemas. Paramos o carro em frente a um bar, tomamos café e fomos investigar o mercado. Já estava um movimento danado, o pessoal montando as barracas, gritando, sacaneando os outros, cantando, fumando, tomando café; já tinha mulherada se estapeando pra comprar roupa de tecido sintético a um euro; mas sobretudo estava um frio DO CACETE. De vez em quando Daniele parava em frente a uma barraca pra tentar ver no escuro um quadro horrível de palhaço, um pedaço de candelabro, um vaso cafona, um abajur hediondo anos 70, uma revista velha e desbeiçada. Replay do fim de semana passado, putz. Rodamos, rodamos, rodamos, e eu acabei comprando dois pares de luvas, porque estava MUITO precisada, e um chaveiro do Eric Cartman por um euro. Daniele negociou e comprou o abajur hediondo anos 70, um cinzeiro idem, e mais algo que não lembro o que era. Paramos pra re-tomar café e tocamos pras Scuderie del Quirinale pra ver a exposição sobre os soldados chineses de terracotta.

Pára tudo!!! A mostra está ó-te-ma, e quem tiver a oportunidade de dar um pulo em Roma, a cidade que é tudo na vida, aproveite a deixa e vá lá ver. Tem uma certa fila, a mostra é relativamente pequena e cara (10 paus), mas vale a pena. Termina no final de janeiro. Corram!

as delícias da distribuição de renda

Por mim sábado eu não botaria o pé pra fora de casa, mas tive que sair pra levar a lista dos eletrodomésticos na loja, pra eles fazerem o pedido. Na volta passei na casa nova pra ver a quantas andavam os trabalhos. Encontrei dois lajoteiros botando a cerâmica do nosso apartamento. Trocamos os comentários usuais, como está indo, muito bem, a cerâmica é de ótima qualidade, a do apartamento do lado era uma merda, ah, que bom que está ficando legal. Aí ele solta a pérola. Vamos ser vizinhos!

Tóin.

É legal isso de todo mundo ter mais ou menos as mesmas oportunidades, mas jamais na minha vida imaginei que iria terminar morando no mesmo prédio de um albanês que de profissão coloca pavimentos de cerâmica. Dali a coisa foi só piorando: no mesmo andar temos um caminhoneiro e um napolitano, além de uma senhora que já mora ali na área. Em algum lugar do prédio tem um marroquino, e o que salva é o marechal dos Carabinieri no andar de baixo. Vejam bem, pedreiro é uma profissão como outra qualquer, mas eu acho muito estranho esse negócio de todo mundo ser igual. Porque a gente sabe que tem uns que são mais iguais do que os outros, não sejamos hipócritas. Por que um cara como o Moreno, que não estudou porra nenhuma, é ignorante, mal educado e vem de uma família de ignorantes e mal educados (são gente finíssima, mas isso não os faz menos ignorantes ou mal educados) ganha mais do que eu, que tenho um emprego que PRECISA de qualificação, ou do que o Mirco, que dá trabalho pra em média dez pessoas, ou do que a namorada dele, que é formada e trabalha em museu, enquanto que vocês vão me desculpar, mas dirigir ônibus elétrico todo cheio de mumunhas qualquer um consegue? Eu acho isso tudo muito esquisito. E jamais vou me acostumar à idéia de morar no mesmo prédio de um pedreiro, que provavelmente ainda por cima tem um carro muito mais novo do que o meu, e uma mulher que não trabalha.

Justiça social às vezes é um negócio injusto.

vida besta

Como as estradas aqui do interior do Malawi são cruéis com meu som vagabundo do carro, que pula por qualquer motivo, acabo escutando rádio todos os dias. Sempre Radio 2, com programas em vez de música, porque vocês sabem como eu abomino música italiana. De manhã pego um programa ridículo chamado O Rugido do Coelho, em que os apresentadores fazem perguntas idiotas e o público liga ou manda torpedos com respostas idem – coisas do tipo, você já fingiu ser alguém importante pra conseguir o que queria, qual foi a maior mentira que você já contou pros seus pais, se pudesse fazer um pedido ao Papa que pedido seria, etc. O melhor, lógico, são os comentários deles.

E quando volto, dependendo do horário, pego Dispenser, mais tarde, de longe o melhor programa da rádio italiana, em que um cara MOITO esperto e com uma clareza de raciocínio e comunicação impressionante fala de cultura em geral e toca músicas estranhas completamente fora do circuito pop. Normalmente fico repetindo os nomes dos livros que ele sugere até chegar em casa, pra não esquecer e poder anotar. Se saio do trabalho um pouco mais cedo, tem um hominho também muito claro que conta histórias de personagens ou fatos históricos importantes. Essa semana foi Frederico não sei o quê (nunca consigo pegar no começo), alemão, filho do rei da Prússia em não sei quando. Não sei o nome dele mas conheço sua história inteirinha. E se saio ainda mais cedo pego Caterpillar, um outro humorístico não idiota. Ontem e hoje eles estavam transmitindo ao vivo de Florença, onde aparentemente estava rolando um concurso de invenções inúteis.

Os finalistas de ontem foram o “abridor de portão preguiçoso”, que só ouvi mencionar e pelo que entendi é uma espécie de robô que abre o portão pra você, e o “tortômetro”, um troço genial que pode ser usado pra toda e qualquer torta, de qualquer dimensão e modelo, e calcula exatamente o tamanho exato de cada fatia pra que a torta seja realmente dividida em partes iguais. Os de hoje foram uma espécie de aparelho de tecido pra grávidas, um tipo de suporte de barriga, que transfere o peso da pança pra coluna vertebral de modo harmonioso, pra evitar dores nas costas, e uma coisa que não entendi direito como é feita mas dei muita risada quando ouvi: um negócio pra ajudar os pais que ensinam os filhos a andar de bicicleta sem rodinha. O cara começou a apresentação assim: todo homem que já correu atrás de um filho de bicicleta vai dar valor à minha invenção. Cara, eu caí na gargalhada, inclusive porque meu pai filmava tudo quando a gente era pequeno, inclusive as aulas de bicicleta, e lembro direitinho dele todo corcunda correndo feito louco atrás do Tuco, de mim e das minhas primas, e nós cambaleando na bicicleta sem rodinhas. Achei absolutamente hilário. Um que também me fez dar risada mas não foi pra final foi o P di Parcheggio (parcheggio = estacionamento), um P iluminado que acente no alto do seu carro quando você está estacionando pro motorista que está atrás de você não roubar a vaga nem encher o saco. A coisa linda é que em um país civilizado uma coisa dessas jamais passaria pela cabeça de ninguém, já que roubo de vaga é uma coisa unheard of e ninguém pisca farol todo irritadinho só porque um fulano demora pra estacionar. Um dos juízes deu oito, mas disse que daria dez se além da luz o aparelho tivesse uma pistola que desse um tiro no idiota que insistisse em encher o saco. Ri pra caramba.

E pra finalizar o dia das risadas idiotas, peguei vários velhinhos de chapéu no trânsito hoje. O Moreno, que dirige ônibus, tem uma teoria: morrinha no trânsito ou é mulher ou é velho de chapéu. Toda vez que tem alguém muito mole na minha frente penso no Moreno, que é uma figuraça, dizendo essa frase, e acabo rindo sozinha.

Finalmente a maldita neblina, que não se mexia desde domingo, resolveu dar uma trégua. Eu tava sentada no computador, de repente do nada olhei pela janela e dei de cara com um céu azul! Caraca! Aproveitei pra fazer um longo passeio ao longo do rio, namorando os patinhos enquanto dava meus passos largos e vigorosos. Cheguei na escola vermelha e morrendo de calor, feliz da vida. Amanhã levo o mp3 player que é mais legal : )

A primeira unidade do livro que uso pra dar aula tem uma parte com fotos de coisas conhecidas, que o estudente deve usar pra perguntar “Where is it from” enquanto o outro responde “It’s from …..”. Tem a estrela da Mercedes, tem um camembert, tem duas gueixas, tem um par de óculos Armani, tem cerveja Guinness, tem tênis Nike, tem matrioska russa, e tem… tem uma foto de uma torcida brasileira. Toda vez que vejo essa foto começo a rir sozinha, porque não só dá pra ver a cara de brasileiro da galera, mas inclusive o que está escrito nos cartazes. Meus alunos devem achar que eu sou maluca, mas quando vejo aquela foto com um Roberto qualquer segurando um cartaz escrito “Galvão, cadê o Romário”, caio na gargalhada.