Sonhei com uma baleia corcunda tagarela a noite toda.
Detesto sonhos autobiográficos.
Sonhei com uma baleia corcunda tagarela a noite toda.
Detesto sonhos autobiográficos.
Fomos ver Babel em Foligno com Marco e José. Achei legal. Gosto de filmes assim “desconstruídos”, com um pedaço pra cada lado e sub-plots interligados. Meio lento, mas legal. Engraçado que toda a parte inicial, ali naquelas casas precárias de pedra no interior do desértico Marrocos, é igualzinho ao início de Nuovomondo – que, vocês lembram, se passava na Sicília. O mundo gira, a Lusitana roda, e os problemas são os mesmos, só mudam de mãos…
Jantamos no Sparafucile, lógico. Passei o dia inteiro tomando só líquidos pra poder merecer o petit gateau com sorvete de creme de sobremesa.
ALGUÉM POR FAVOR VENHA AQUI ME VISITAR PRA GENTE JANTAR LÁ JUNTOOOOOOOOS!
Moreno viciou mesmo na cozinha do Giovanni, aquele lá na casa do chapéu. Daniele e a coreana muda acabaram não indo, então éramos só eu e Mirco, Moreno e Marta, e o irmão do Moreno, outro Mirco, pra quem aliás já dei aula de inglês, a mulher, Silvia, e o filhinho Davide, de dois anos.
A diferença entre a Silvia e a Michela é gritante. A Michela, além de ser uma pobre idiota, é chata, paranóica, aquele tipo de mãe que acha que o filho é de cristal e qualquer coisa quebra. Imaginem que ela se recusa a jantar em restaurantes mais afastados porque “não quer ficar dando voltas de carro com o garoto” – além de todos os defeitos do interior do Zaire, as pessoas ainda têm essa mania hedionda de não se referir aos filhos pelo nome, mas chamando-os de “o filho” e “a filha”, que em dialeto querem dizer “o garoto” e “a garota”. Silvia não só chama o filho pelo nome, mas com ele não fala em dialeto, e ainda por cima o garoto tem total liberdade. Como é educado, ter liberdade não significa fazer o que der na telha e encher o saco dos outros. Ele desce da cadeira, passeia pelo restaurante enquanto a Silvia o observa de longe, vai até a lareira, olha, volta pra mesa parando pra sorrir pros outros comensais que o cumprimentam. Dá beijo em todos, lembra os nomes de todo mundo, inclusive o meu e o do Mirco, experimenta comidas novas, não faz palhaçada pra chamar a atenção, não fica enlouquecido de pavor se não acha a mãe ou o pai. Foram todos juntos ao banheiro e o pai voltou antes. Quando Davide voltou com a mãe, foi direto abraçar o Moreno e brincar com a Marta. De repente levantou e foi sozinho na direção do banheiro. Silvia, que é espertíssima e muito legal, deduziu que ele não tinha percebido que o Mirco já tava sentado à mesa e tinha ido sair pra procurá-lo no banheiro. Calmíssimo, sem correria, sem choro, sem nada – simplesmente achou que o pai tinha ficado no banheiro e foi lá muito tranqüilamente chamá-lo. Fosse outra criança chata, teria logo aberto o berreiro.
Adoro ver essas coisas. Me dão esperanças pro futuro aqui do Bangladesh.
Fiz a escolha certa mesmo: depois de todo aquele nhém-nhém-nhém de abraão, david, turn the other cheek, evangelhos e coisa e tal, só mesmo Dawkins pra me trazer de volta à realidade (que, não me canso de repetir, é muito, muito mais bonita):
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There is a better reason for studying zoology than its possible ‘usefulness’, and the general likeableness of animals. This reason is that we animals are the most complicated and perfectly-designed pieces of machinery in the known universe. Put it like that, and it is hard to see why anybody studies anything else!
(“Preface to the first edition”)
If we were told that a man had lived a long and prosperous life in the world of Chicago gangsters, we would be entitled to make some guesses as to the sort of man he was. We might expect that he would have qualities such as toughness, a quick trigger finger, and the ability to attract loyal friends. These would not be infallible deductions, but you can make some inferences about a man’s character if you know something about the conditions in which he has survived and prospered. The argument of this book is that we, and all other animals, are machines created by our genes. Like successful Chicago gangsters, our genes have survived, in some cases for millions of years, in a highly competitive world. This entitles us to expect certain qualities in our genes. I shall argue that a predominant quality to be expected in a successful gene is ruthless selfishness. This gene selfishness will usually give rise to selfishness in individual behaviour. However, as we shall see, there are special circumstances in which a gene can achieve its own selfish goals best by fostering a limited form of altruism at the level of individual animals. ‘Special’ and ‘limited’ are important words in the last sentence. Much as we might wish to believe otherwise, universal love and the welfare of the species as a whole are concepts that simply do not make evolutionary sense.
(chapter 1 – Why Are People?)
The Selfish Gene – Richard Dawkins
A coisa em Nápolis tá pegando fogo. Até bala perdida eles também já estão adotando. Daqui a fechar túnel pra assaltar a galera presa dentro é um pulo, cês vão ver.
Inclusive já tem gente pedindo ajuda do exército. Sounds familiar, doesn’t it.
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Aí o Striscia la Notizia outro dia mostrou como inclusive os policiais à paisana andam de moto sem capacete – TODO MUNDO em Nápolis anda de moto e lambreta sem capacete. E hoje mostraram novamente a foto dos dois à paisana montados na mesma moto e sem capacete, e leram no ar a explicação que um dos colegas dessa mesma força especial da polícia mandou por e-mail: se eles usassem, seriam confundidos com assassinos, porque só quem comete crime e precisa esconder o rosto usa capacete em Nápolis.
E olha que eles nem têm Rosinha e Garotinho.
Conheci um casal muito estranho hoje.
Depois de um dia inteiro sem fazer nada (o feriado aqui é hoje), resolvemos coroar nossa preguiça infinita jantando no McDonald’s. Ainda eram seis da tarde, mas com essa merda de outono já estava escuro. Enquanto estávamos na fila um gordinho acena pro Mirco, que me explica quem era: o filho do Brbfsrsjfsf, assim chamado porque ele mais grunhia do que falava, o dono da vendinha em frente à casa da Chiara e onde ela compra pão todos os dias. Brlmsfmnrb morreu ano passado, e agora é a viúva quem fica na vendinha. Mas eu ainda não tinha conhecido o filho, que se chama Daniele.
Daniele nos chamou pra sentar à mesa com ele e a namorada coreana, Une, que veio pra Itália estudar piano. Cara, um casal mais bizarro eu ainda tô pra conhecer. Ele é gordo, alto e agitado, fala SEM PARAR e, acreditem, muito mais rápido do que eu. Ela é completamente muda, de oclinhos, toda intelectual e frágil. Ele tem uma loja de móveis tabajara, uma casona, uma Lotus e uma Ferrari na garagem. Ela estuda piano há seis anos. Tipo assim, toooooootalmente nada a ver. Sábado vamos jantar todos juntos no Giovanni, aquele lá na casa do cacete. Vamos ver se alguém consegue embebedar a garota pra ela soltar algumas palavras.
Whoever the Beloved Disciple was – that is, the Johannine church’s original eyewitness – he had a sharp eye and a keen ear, for he picked up on details ignored by the other evangelists. In many of Jesus’s encounters, the dialogue has the quick, prickly humor of the Greek theatrical comedy. After Philip is called by Jesus, he runs into Nathaniel (to be identified perhaps with the Bartholomew of the Synoptic tradition) and exclaims:
“We’ve found the One that Moses
wrote about in the Torah and the
prophets wrote about, too – he’s
Jesus bar-Joseph from Nazareth!”
“Nazareth! Please. What good
ever came out of Nazareth?”
Desire of the Everlasting Hills, de Thomas Cahill
Adorei esse pedaço. Mas não vejo a hora de acabar; que livro chatinho. Acho que vou encarar outro Dawkins depois, pra amenizar os efeitos jesuíticos desse aqui.
Resolvemos ir ao cinema em Bastia depois do expediente. Saí do trabalho e fui direto pro centro. Parei no estacionamento da Coop e caminhei os dois passos até o cinema. Logo depois Gianni e Chiara apareceram, e finalmente Mirco com meu jantar, um misto quente. Esqueci que o dia seria longo e não levei almoço “sério” pro trabalho, comi só um pedaço de pizza de batata e alecrim que Mirco tinha comprado sábado. Já sei que amanhã vou ter enxaqueca porque não posso jejuar assim por tanto tempo (jamais poderia fazer o que a Maura fez).
Mas enfim, o filme era The Departed, do qual eu não sabia absolutamente nada. Mas A-DO-REI. Adoro filmes em que se vê a mão do diretor, nesse caso o Scorsese. A edição é ótima, o roteiro é bom, o conflito bom-que-se-finge-de-mau e mau-que-se-finge-de-bom é original, os atores estão todos ótimos (apesar da cara de Meu Bebê do di Caprio, sempre achei o menino um bom ator), a música é perfeita. Gostei, gostei, gostei, e vou ter que pegar o DVD pra poder curtir os sotaques originais. Vão ver! Agora! Tchau!
Então acordamos cedão e fomos pra Roma de carro. A fila já estava gigantesca quando chegamos, às oito, pouco depois do museu abrir. O problema é que os Musei Vaticani normalmente não abrem aos domingos, o que é ridículo, mas no último domingo do mês abrem de grátis. Então imaginem a fila, entupida de muquiranas como nós. Eu e Chiara ficamos na fila enquanto os meninos foram estacionar no viale Giulio Cesare, onde eu e Valeria pegávamos o ônibus pro albergue da juventude. Em duas horas e meia de fila aconteceu de tudo: um grupo de estudantes fedorentos do leste europeu furou a fila na nossa frente, dois indianos discutiram atrás de nós, veio a polícia pra empurrar o pessoal de volta pra calçada, porque já tinha neguinho fazendo fila no meio da rua, e, cerejinha no chantilly, esse japonês solitário fez uma longa sessão de limpeza dos ouvidos. Com um palito.
O nosso objetivo era mesmo a Capela Sistina, que só eu tinha visto com as cores fortes depois da restauração. Mas cara, como é difícil ser turista num mundo cheio de turistas. Tem gente demais em tudo que é lugar, parece que a gente tá em Pequim. O que não é exatamente um elogio. E ainda por cima neguinho é mal educado pacas: se tá escrito que não pode tirar foto, NÃO TIRE FOTOS, oras. Mas não: um monte de gente se fingindo de boba e apontando as máquinas fotográficas pra cima. E o hominho do museu gritando No photo, No photo! E o outro hominho fazendo shhhhhhhh porque, afinal de contas, é uma capela, e em lugares religiosos o silêncio é sinal de respeito, até eu sei e obedeço. Mas toda aquela falta de educação foi nos cansando e acabamos indo embora sem ver as outras partes do museu. De qualquer maneira, uma das minhas partes preferidas sempre foi o corredor dos mapas, porque eu A-DO-RO mapas, não interessa de onde. Mapas de lugares estranhos me fascinam pelos nomes bizarros, e mapas de lugares conhecidos me deixam maluca porque é legal reconhecer lugares familiares. Perdemos uns 20 minutos dando risada com os antigos nomes das cidadezinhas aqui do interior da Suazilânda. Tinha até Bastia, meio apagadinha, perto de Ospedalicchio, aqui do lado, que se chamava Spedaletto. Olha Assis como é grande, com aquele crucifixão! C.nuovo é Castelnuovo, onde fomos jantar na sagra com mamãe e Margareth. T. d’Andrea é Tordandrea, terra da mãe do Mirco. Bettona a gente vê aqui de casa, e é onde vamos comer todo ano na festa do ganso. : ))))
Morrendo de fome, pegamos um táxi, que nos sugeriu uns nomes de restaurantes no Trastevere. É um bairro delicioso, perto do ghetto judeu, ao longo do rio, e é famoso pelos muitos bons restaurantes e trattorie. O primeiro nome que o taxista deu foi La Cisterna, que tava fechado. Então fomos comer no Ivo, que apesar da decoração cafona, falso-antiga, nos serviu muito bem. Comi tagliatelle com lingüiça, ervilhas e cogumelos. Mirco e Chiara comeram tonnarelli (que aqui no interior se chamam spaghetti alla chitarra, é uma espécie de spaghetto quadrado em vez de cilíndrico) cacio e pepe, ou seja, com queijo e pimenta-do-reino, um prato típico de Roma. Tudo delicioso e em porção muito mais generosa do que a média. Os meninos ainda encararam um secondo de peito de frango e verdura, e depois do almoço voltamos a pé pro centro. Viemos passando por ruazinhas pouco badaladas até chegar nos fundos do Pantheon, que eu não me canso de olhar (e babar). Mas só fomos lá mesmo porque atrás do Pantheon, na via Maddalena, tem aquela sorveteria, aquela, onde eu sempre tomo sorvete de maracujá. Hoje não foi diferente. O sorvete é caro, 2 euros contra os 1,30 aqui do interior, mas, cacete, como vale a pena! Aqui na Itália ninguém toma sorvete de um sabor só, não existe, então a casquinha menor é sempre “due gusti”. Eu tomei maracujá e doce de leite com Nutella. Estava uma coisa de louco, mas depois me arrependi de não ter provado o chocolate fondente (meio amargo). Fica pra próxima.
Ainda demos mais uma volta por ali mesmo e depois fomos visitar a tia solteirona do Gianni, que mora perto do Vaticano, num apartamento de porão, estilo Nova York, sabe, com janelas que só deixam ver os pés das pessoas. Se eu disser quanto vale esse apartamento no porão, entre o apartamento do zelador e o estúdio de gravação daquela mala sem alça do Pino Daniele, vocês vão chorar de nervoso, então não digo. Mas essa tia é muito engraçada, não é a clássica solteirona infeliz. Sempre trabalhou, sempre curtiu muito a vida, badala pra burro, viaja, vai ao teatro, ao cinema, aos museus, e tem muita história pra contar. Só que ela fala sem parar e eu via o Gianni desesperado querendo achar um espacinho pra interromper o monólogo e dizer que tínhamos que ir embora porque tava ficando tarde, e nada. Finalmente ela parou pra respirar e nos despedimos.
A viagem de volta foi tranqüila. Mirco comeu um sanduíche qualquer quando chegamos em casa, vimos metade de um episódio de Dr. House e capotamos.
p.s.: Tem outras fotos aqui.
Depois das duas notícias bombásticas de ontem, ou seja, que tanto V. , do setor comercial, quanto Marco, o tradutor austríaco, se demitiram do manicômio, resolvemos jantar com Marcolino pra entender melhor essa história. Ele é um a-mor de menino, que por algum motivo misterioso a J. (chefe dos tradutores e que traduz mal para cacêtchi, como diz o Mirco) detesta. Educadíssimo, fala devagar, seu italiano tem uma leve entonação gringa mas é muito bem falado (o pai é italiano), e é um ótimo tradutor, daqueles teimosos que não sossega enquanto não achar o termo justo. Ele e José, o espanhol, salvavam minha vida enquanto eu trabalhava lá em cima, porque são divertidos, gentis e ótimos companheiros de trabalho. Sempre demos muita risada juntos, e esse é o único ponto negativo de ter sido transferida pro andar de baixo, na escola, onde passo o dia INTEIRO sozinha, sem ouvir ninguém berrando, sem ouvir telefone tocando e sem sentir fedor de cigarro.
Mas então: apesar de ter feito 6 anos de faculdade – 4 de curso e mais 2 de especialização – ele foi contratado como aprendiz e ganha uma merreca. Além de detestar o modus operandi da agência, o que qualquer pessoa de bom senso também sente. Então vai-se embora. Só não foi antes porque o contrato de aluguel da casa lá na casa do chapéu onde ele mora requer aviso prévio de três meses antes do cancelamento. Então Marcolino vai-se, provavelmente pra Roma, que é tudo na vida, pra trabalhar não sei onde. Emprego não vai faltar porque ele é muito profissional.
E fomos até Nocera, onde ele se esconde, pra jantar e basicamente falar mal da chefa maluca. Fiquei sabendo de outras coisas cabeludas, entendi por que é que J. se submete à loucura da chefa há quatro anos (antes era faxineira, e ali virou “Responsabile Ufficio Traduttori”, apesar de traduzir igual à cara dela. Um belo pulinho.), entendi por que o José ainda não pode se demitir também (mas disso não posso absolutamente falar aqui). Reclamamos de modo geral de como os italianos trabalham e dirigem, elogiamos a comida italiana, falamos mal da TV italiana e da mamma italiana e seus filhos mammoni e superdependentes, falamos bem de Roma e Florença. Foi uma soirée produtiva, mas tivemos que voltar cedo porque amanhã cedo resolvemos ir a Roma, que é tudo na vida, tentar entrar no Vaticano de graça. Veremos.