Italia campione del mondo 2006

Assistimos ao jogo na casa da namorada do irmão da Michela, em Santa Maria. O Marco e a Michela moram na zona industrial, mas a Nicola, a tal namorada, está bem no centro de Santa Maria, perto da muvuca.

Em frente do prédio dele mora um dos milionários da cidade, que botou um telão gigantesco dentro de casa e encheu o quintal de gente. Em frente à casa um conhecido dos meninos parou um trator que puxava um reboque todo enfeitado, como palanque em véspera de comício. Na parte da frente do reboque, uma mesa de som e uma porchetta inteira. Dois loucos passavam pra lá e pra cá com suas lambretas pintadas com as cores da bandeira italiana, um deles com uma Copa de plástico colada na frente, uma comédia.

O jogo foi, bem, o jogo foi todo comandado pela França. No segundo tempo e durante toda a prorrogação a Itália mal tocou na bola, e só não levou gol porque deu muita sorte e porque o Buffon é um monstro. Zidane deu aquela cabeçada animal incompreensível, e todo mundo queria ser uma mosquinha pra saber o que o Materazzi falou pra ele pra levar uma arietada assim no peito. Acabou que a Itália ganhou nos pênaltis só e exclusivamente por causa do erro do adversário, já que nenhum dos goleiros segurou coisa nenhuma. Eu acho muito chato ganhar assim, e mais terrível ainda PERDER assim, de modo que teria feito o mesmo que os franceses: teria arrancado a medalha do peito na hora. Perder sem merecer é incrivelmente desagradável.

Descemos pra ver a festa na rua, e parecia carnaval no Rio. Todas as lambretas do mundo voavam pra lá e pra cá esvoaçando bandeiras. Quem tinha trator veio de trator. Quem tinha caminhão encheu a caçamba de gente. Quem tinha moto veio de moto. Teve até um que trouxe o barco no reboque, devidamente cheia de gente! Tinha carro alegórico com a Copa gigante em papelão, tinha adolescente brincando de jogar os outros no chafariz, tinha gente puxando o refrão contra os franceses, tinha cachorro latindo, tinha recém-nascido mamando, tinha velho bêbado dançando, tinha buzina tocando (MUITA buzina tocando), tinha fogos de artifício explodindo, tinha morteiro barulhando, tinha fumaça fedendo a enxofre, tinha gente demais fumando e enchendo o saco, tinha criança montada nos ombros dos pais que pulavam, tinha uma quantidade incrível de gente na rua. Soubemos que em Bastia tinha até caminhão-pipa jogando água na galera, embora não estivesse particularmente quente. Mas sobretudo tinha muita, muita lambreta. Um país cheio de lambretas é, nessas horas, um país abençoado. É muito mais legal fazer farofa de lambreta do que de carro (e muito mais prático também).

Mais fotos aqui. E vídeos no UTube, vão lá procurar.

shoo vampire, don’t bother me

Não estou acostumada a dormir depois do almoço. Ontem passei a manhã fazendo uma revisão, e depois do almoço capotei. Mais tarde o Mirco acordou e foi a Santa Maria cortar o cabelo, mas eu nem me mexi no sofá. E aí à noite não conseguia dormir. Fiquei vendo Entrevista com o Vampiro até 4 da manhã.

Cara, é o filme mais cafona do-mun-do! NADA é comparável ao cabelo do Antonio Banderas, nem o corte da Farrah Fawcett. NADA está no mesmo patamar daquela maquiagem horrível, nem a maquiagem das apresentadores de telejornal italianas. O livro já é de uma bobeira ímpar, mas o filme consegue ser pior ainda – só se salva o figurino. Mas olha, o cabelo do Banderas me traumatizou. Tinha esquecido que existia tanta cafonice no mundo. E canastrice também.

maravilha

Choveu, finalmente! Que dia fresquinho! Que jantar gostoso e meteórico em Ripa! O bom da chuva é que neguinho não sai de casa, então não tinha ninguém na fila da Festa da Trufa em Ripa. Não tinha conseguido falar com a FeRnanda, e Marco e Michela não queriam sair com o filho pequeno “no frio” (19 graus…), então fomos só nós dois mesmo. Mal pagamos o pedido e já ouvimos chamarem o nosso número no microfone. Deliciosos gnocchi com molho de trufas, e o Mirco ainda traçou uma torta al testo com prosciutto e pecorino. Em vinte minutos pedimos, pagamos, comemos e entramos no carro. Impressionante! Ainda deu tempo de passar no Gianni e na Chiara pra bater papo e tomar um sorvete na praça, em Santa Maria.

Esse período do ano aqui é muito gostoso. Todo mundo fica até tarde na rua, nas praças, nas sorveterias, nos bares. Os velhinhos passeiam de bicicleta, os adolescentes de lambreta com os cabelos ao vento por baixo dos capacetes, conversando enquanto pilotam, os marroquinos fumam enquanto sobem e descem a rua vinte e oito vezes seguidas, os turistas se entopem de sorvete, todos se entopem de sorvete. Aqui onde a gente mora não há vida, apesar do bar embaixo do prédio ao lado, mas Santa Maria fervilha (mantidas as devidas proporções, é lógico). E é uma delícia mesmo passear com calma, jogando conversa fora, tomando sorvete de chocolate e de Kinder, planejando a viagem a São Petersburgo. A impressão é que a gente fica assim meia hora mais jovem.

Estávamos com desejo de McDonald’s, mas resolvemos nos controlar e ir jantar no Brilli Bistrot, que já foi nosso restaurante preferido. Erro muito grave: os preços subiram vertiginosamente nos últimos três anos, os melhores pratos sumiram do menu, as sobremesas deliciosas desapareceram, deixando no seu lugar umas mousses industriais horrorosas. A única coisa que não mudou foi a proprietária, uma chata de galochas que só se veste de preto esvoaçante e adora dar espetáculo preparando a maionese na hora, numa mesinha plantada no meio do restaurante, e batendo a colher na tigela de vidro de modo a fazer o maior barulho possível. E depois, cerejinha no chantilly, ela pega uma colherzinha de maionese, ou de tartar, ou do que estiver encenando, e dá na boquinha do cliente pra ver se ficou bom. SOCORRO!

Hoje ela estava empolgadíssima porque aparentemente tinha um casal de amigos dela jantando. Então começou o desfile de pratos: camarões gigantes da Sicília, ostras da Normandia, pimenta francesa com “carteira de identidade”, sal de Guérande (esse é bom pra cacete, tenho que admitir – aparentemente sal é só sal, mas esse tem alguma coisa de particular), macarrão feito à mão (cof cof) em Nápolis, e por aí vai. Uma papagaiada tão grande que de tanto segurar o riso eu e Mirco nos engasgamos com o pãozinho feito em casa (que é uma delícia, ainda mais com azeite extravirgem das colinas de Spello e sal de Guérande, ho ho ho).

A salada do Mirco foi supercara e nada de especial, a minha tortinha de fava e ervilha com cebola caramelada estava adocicada demais, as batatas que acompanhavam o ótimo filé de Angus (carne argentina, não tem como não ficar boa) no molho de vinho tinto e zimbro estavam meio assim assim, farinhentas. E a conta ainda saiu cara demais. Na próxima vez vamos de cheeseburger mesmo, juro.

uia!

Esqueci de comentar um texto muito interessante que traduzi há algumas semanas. Falava de lesões cerebrais leves após trauma encefálico, mas não era excessivamente técnico. Pelo contrário: aparentemente levava-se em consideração a dificuldade de distinguir sintomas verdadeiros de sintomas voluntariamente fingidos pra tirar dinheiro da companhia de seguros e de sintomas imaginários. A categoria mais interessante é essa última: o artigo dizia que a influência cultural é tão, mas tão grande que, por exemplo, pacientes que tinham batido a cabeça e vinham de países onde popularmente se diz que quem bate a cabeça perde a memória apareciam no médico queixando-se de perda de memória. Mas quando faziam os testes de memória, eram completamente normais! Em outros contextos culturais, onde o povo repete que quem bate a cabeça fica com dor de cabeça, neguinho aparecia reclamando de dor de cabeça, embora não houvesse nenhum dos outros sintomas normalmente associados à cefaléia pós-traumática.

Enfim, corroboraram o que qualquer um morando na Itália aprende: que aqui neguinho jura tão de pés juntos que beber água gelada dá gastrite que acaba sentindo os sintomas de verdade, embora eu tenha certeza que se você for lá endoscopar o estômago da criatura vai achar uma mucosa linda, digna de ser fotografada, emoldurada e pendurada na parede.

O céLebro é a coisa mais foda do mundo.

ovelha negra

Estou cheia de alunos novos. A maioria são estudantes que precisam recuperar um débito escolar em inglês – estão com notas baixas que precisam ser recuperadas pra não repetir o ano. Normalmente é um saco trabalhar com adolescentes porque são uns debilóides que não querem nada da vida. Mas essa semana apareceu uma surpresa: uma menina de Roma, que passa o verão perto de Foligno na casa dos avós, com os cabelos revoltos, maquiagem zero, Birkenstock nos pés, ombros largos de jogadora de vôlei, pasta do South Park. Os pais a estão mandando pra um buraco em Oklahoma em setembro pra um intercâmbio de 6 meses, e o pai, professor de italiano em Roma, quer que ela dê uma refrescada no inglês. A garota é muito interessante! Completamente fora dos padrões, observadora, inteligente, e, coisa completamente anormal nesse país de zumbis, interessada e louca pra ir estudar fora! Batemos altos papos e acabei aprendendo mais do que ela, tenho certeza. Me explicou de modo muito claro o ridículo sistema educacional italiano, que o pai (e a mãe, que também ensina) abomina, explicou por que não aceitou a proposta de ir jogar vôlei profissionalmente em um time juvenil aos 13 anos, e outras coisas mais. Graças aos céus de vez em quando me aparecem essas criaduras salvadoras! Porque ter só aluno burro é de matar.

calcio

Notaram que eu não comentei o jogo? É porque no final das contas eu já tava tão irritada que estava torcendo pra França. Vai, Zizou, vai, meu filho! O Mirco, que como todo europeu não-francês DETESTA os franceses, não agüentou ver o jogo e foi ver outra coisa na TV do quarto. Por mim, teria sido tipo oito a zero. Não tá a fim de jogar? Então toma! Ora, faça-me o favor!

Aí o pessoal do escritório, mas você deve estar supertriste, né? Eu não, sinceramente. Quem não faz seu trabalho direito não tem direito a ganhar porra nenhuma. Acho horrível, horrível e vergonhoso ganhar SÓ por sorte ou por erro dos outros. Mas faça-me o favor! Não é que vença o melhor? Então, o melhor venceu. Pronto, fim do assunto.

Em compensação, durante a semifinal da Itália eu sinceramente não sabia pra quem torcer. Ninguém gosta dos alemães, muito menos eu, mas acho tão terrivelmente triste perder em casa, com aquela cabeçada salsichenta toda no estádio! E ainda por cima perder pros italianos marrentos e lindos e simpáticos! E como o escândalo do futebol italiano anda me dando um nojo colossal também, fiquei meio na dúvida. Lógico que acabei torcendo pros azzurri, mas que deu uma peninha dos salsichentos, ah deu.

Mas a coisa mais engraçada é entender o que os jogadores dizem quando as câmeras os focalizam. A quantidade de palavrões é, lógico, interplanetária, mas como xingar em italiano é uma coisa ma-ga-vi-lho-sa, entender esses xingamentos também é uma diversão só. A cara do Lippi quando o juiz não deu falta: MAVAFFANCULO! A cara daquele louco do Gilardino, vesguinho, irritado porque alguém não lhe passou a bola: MA CHE CAZZO! A cara do Buffon quando a defesa deu mole: PORCA MISERIA! Entre outros.

O louco furioso do Gattuso, o Camoranesi com cara de guerreiro asteca, o superpitéu do Toni, o Totti que depois da lesão no joelho ficou com medinho e foge da raia e dorme em campo, tudo é muito divertido. Adoro Copa do Mundo.

E o Portugal perdendo pra França, que tristeza? Não porque eu tenha simpatia particular por Portugal, apesar da descendência, muito menos porque fomos eliminados pela França, um país que eu adoro (e, convenhamos, aquele povaréu todo cantando a Marselhesa é de arrepiar até as sobrancelhas), mas porque os portugas perderam uns gols tão, mas tão quase-gols que até se tivesse sido a Argentina jogando eu teria ficado nervosa por eles.

Hm, não.


Pra acalmar os meus nervos anticristãos, fiquei horas olhando pra estante pensando no que ler. Acabei pescando um Dickens, que é que nem descanso e canja de galinha, não faz mal a ninguém. Mas ando tão cansada que não tenho forças pra ler nem meia linha antes de capotar. Ando tomando uns comprimidos de valeriana que a Margareth tinha comprado pra dormir no trem pra Paris com a mamãe, mas como não adiantaram nada e ainda por cima fedem feito o diabo, ela deixou aqui. Precisa nem dizer que não adiantam coisa nenhuma, né. E ainda tenho que lavar as mãos depois de tomar, porque vou te dizer, vai feder assim lá na casa do chapéu! Putz!

O que eu não dava por um suquinho de maracujá bem gelado…

Acabei de ler Il Libro Nero del Cristianesimo. É fascinante. Especialmente o capítulo sobre as Cruzadas. Especialmente a Santa Inquisição. Especialmente a conquista espanhola na América do Sul, um dos episódios mais cruéis da história da humanidade, e devidamente abençoada pelo clero. Especialmente… Bom, o livro TODO vale a pena. Explicado muito bem, com exemplos muito, hm, ilustrativos, dá uma certa indigestão mas é altamente iluminador. A parte sobre a história contemporânea da igreja católica é particularmente interessante. Tradução minha:

 

A Igreja e os Negócios (pág. 269)

A Santa Sede tornou-se uma potência econômica que administra fortunas tão colossais quanto discretas na economia mundial.

Com os Pactos Lateranenses de 1929 entre o governo de Mussolini e a Santa Sede, foi resolvida a querela com o Estado italiano pela anexação dos territórios submissos ao Estato pontifício.

A convenção financeira liqüidava as pendências econômicas entre as duas partes através de um conspícuo depósito da parte do governo italiano e da cessão de uma grande quantidade de títulos acionários como indenização pelos danos sofridos pela Santa Sede com a anexação dos Estados ex-pontifícios à Itália e a conseqüente liqüidação de grande parte do eixo patrimonial eclesiástico.

Naquela época o Estado garantia ao Vaticano um subsídio anual de 3.250.000 liras.

Pouco depois o Estado italiano reconheceu ao Estado Vaticano mais uma indenização una tantum de um bilhão e 750 milhões de liras da época, entre dinheiro líquido e títulos.

Para administrar este imenso patrimônio, a Santa Sede recorreu a um laico, Bernardino Nogara, ex vice-presidente do Banco Comercial Italiano, que aceitou sob a condição de ter completa liberdade de investimentos em todos os lugares do mundo e em todas as maneiras que ele julgasse apropriadas, de modo “completamente livre de qualquer consideração religiosa ou doutrinal”. [o  negrito é meu.]

(…)

Em 1968, dez anos depois da morte do engenheiro Bernardino Nogara, nominado pelo Papa administrador especial da Santa Sede,e quarenta anos depois dos Pactos Lateranenses, as várias participações do Vaticano na indústria, nas finanças e nos serviços foram estimadas em oito bilhões de dólares.

Depois de Nogara, o Vaticano recorreu aos serviços de Sindona e depois, quando este deixou de ser freqüentável [N.T.: esse Sindona se envolveu até a raiz dos cabelos em inúmeros escândalos financeiros], aos de Roberto Calvi. Será preciso esperar a falência do Banco Ambrosiano [outro escândalo intergaláctico], depois da morte de Calvi, para descobrir o envolvimento colossal do Vaticano nos negócios ilícitos operados por Sindona e Calvi.

Roberto Calvi tinha se tornado presidente do Banco Ambrosiano em 1975. Era chamado “banqueiro de Deus”, por sua proximidade com o Ior [Istituto Opere Religiose, o banco principal do Vaticano do qual o Papa é o único acionário, e suspeito de envolvimento com os nazistas alemães e croatas] de Paul Marcinkus.

Calvi criou uma rede de estruturas formada por filiais off shore nas Bahamas, uma holding em Luxemburgo, sociedades piratas na América Central e cofres na Suíça. Ao longo dos anos criou um império que se desenvolveu assustadoramente e que se transformou em um ponto crucial não somente da lavagem de dinheiro sujo da criminalidade organizada (máfia), mas também de organizações internacionais de vários calibres: do tráfego de armas para a guerra das Ilhas Falkland até o apoio à ditadura de Somoza, pasando pelo financiamento do sindicato católico polonês Solidarnosc.

Quando a posição do “banqueiro de Deus” ficou insustentável, o Ior e o Opus Dei se retiraram, retirando todo o apoio a Calvi, que foi preso. Quando foi libertado fugiu para Londres, à procura de apoio internacional e ameaçando tornar públicos alguns documentos quentes que possuía.

No dia 17 de junho de 1982 foi encontrado morto, enforcado embaixo da Blackfriars Bridge em Londres. A polícia inglesa arquivou o caso como suicídio. Somente em 1998, durante uma causa civil, um tribunal italiano declarou a morte de Calvi como homicídio porque as análises radiográficas do cadáver não mostravam nenhuma das lesões ósseas cervicais muito prováveis em caso de morte por enforcamento, por causa do contragolpe quando a corda se tensiona. A análise das unhas e das mãos de Calvi demonstrou que em nenhum momento ele tocara os tijolos encontrados nos seus bolsos, muito menos os andaimes que se encontravam por baixo da ponte. Ou seja, o banqueiro tinha sido morto antes (aparentemente a 100 metros da ponte, em um canteiro de obras) e depois o seu “suicídio” teria sido encenado.

O processo penal ainda está em andamento.

A secretária pessoal de Calvi morreu doze horas depois dele, “jogando-se” da janela da sua sala no Banco Ambrosiano. Michele Sindona (o mentor de Calvi), depois de ter encenado seu próprio seqüestro, foi preso e morreu em 1986 na prisão, depois de ter bebido um café com arsênico.

Il Libro Nero del Cristianesimo (Duemila Anni di Crimini nel Nome di Dio) de Jacobo Fo, Sergio Tomat e Laura Malucelli, editora Nuovi Mondi Media, 15,50 euros bem gastíssimos.

 

Não é uma coisa linda?